Direção: Charlie Chaplin
Há exatos cento e vinte e dois anos, no dia 16 de abril de 1889, nascia em Londres Charles Spencer Chaplin cujo talento, anos mais tarde, seria reconhecido em todo mundo, colocando sua imagem entre as mais marcantes do século passado e da história do cinema. Alguns dias depois, naquele mesmo ano – mais especificamente no dia 20 de abril – nascia na Áustria uma criança que receberia o nome de Adolf Hitler cujo talento discursivo seria inquestionável, não fossem suas tendências megalomaníacas e seu ódio antissemita. Essas duas figuras icônicas do século XX tinham mais em comum que a proximidade de seus nascimentos. A semelhança física entre o líder ariano com o personagem mais famoso de Chaplin, o vagabundo Carlitos, por muitas vezes foi levantada e seria explorada de forma genial pelo cineasta inglês, já radicado nos Estados Unidos.
Já fazia mais de dez anos que o som chegara ao cinema, mas Chaplin, assim como outros atores e cineastas, ainda relutava em utilizá-lo em seus filmes. Em Tempos Modernos, chegou-se a utilizar alguns elementos sonoros, mas a voz do adorável vagabundo foi evitada até a cena icônica de Chaplin dançando e cantando em um restaurante em uma língua ininteligível – era a forma de ele aceitar a evolução, mesmo que isso pudesse significar a morte de suas gags visuais; não havia espaço para Carlitos no cinema falado. Em O Grande Ditador, o vagabundo dava lugar ao, também adorável, Barbeiro Judeu que durante a primeira guerra mundial fora responsável por salvar um colega de infantaria, sofrendo um acidente que o deixaria desacordado por um longo período de tempo, afastando-o das transformações por que passaria seu país Tomânia (clara referência à Germânia ou Alemanha). Chega ao poder o ditador Adenoid Hynkel (um dos maiores personagens da história do cinema, também interpretado por Chaplin) com sua mania de grandeza e de realizar discursos calorosos – através dos quais, Chaplin utiliza toda sua genialidade em uma imitação divertidíssima do alemão acentuada por gestuais sempre bem colocados na trama.
Ao acordar de seu coma, o Barbeiro volta para o gueto onde encontra seus semelhantes sofrendo inúmeras perseguições, fruto de um modelo ideológico que prega o ódio a tudo que não é ariano. Lá, ele conhece a jovem Hannah, interpretada pela sempre bela Paulette Goddard (com quem Chaplin foi casado), com quem vivencia um romance sempre puro e, em vários momentos, engraçadíssimo (como na cena em que o Barbeiro desatento começa a barbear sua amada). Aliás, deve-se ressaltar que, O Grande Ditador é recheado de cenas antológicas das quais citarei apenas três.
Em determinado momento da narrativa, o Barbeiro está fazendo a barba de um senhor enquanto ouve seu rádio. Ao som da Dança Húngara nº 5 de Brahms, Chaplin realiza os movimentos em sincronia perfeita, deixando claro que seus trejeitos visuais não seriam apagados pelo advento do som no cinema – seria bom demais se os comediantes de hoje em dia tivessem um décimo do talento observado nessa cena. Em outro momento da narrativa, em uma discussão com seu ministro Garbitsch (referência a Goebbels), Hynkel tem noção do tamanho do poder que poderá conquistar em suas investidas megalomaníacas (Aut Caesar, aut nullus. Imperador do mundo. Interessante uma de suas conclusões, que reflete uma crítica bem irônica a Hitler: Uma nação de arianos com um líder moreno). Ali se inicia o balé mais famoso do cinema: Hynkel bailando por seu enorme gabinete com um Globo Terrestre em mãos, manipulando o mundo ao bel-prazer até que ele estoure em suas mãos – uma metáfora muito bem construída por Chaplin, alertando para as possibilidades de um futuro sombrio com a escalada de Hitler ao domínio da Europa. A terceira cena é a última do filme e logo falarei sobre ela.
Antes, existem dois momentos de O Grande Ditador que não podem passar em branco. A visita do ditador do país vizinho, a Bactéria (leia-se Itália), cujos interesses em invadir Osterlich (não consigo decidir se devo encarar como Tchecoslováquia ou como Polônia) se tornam um impasse para Hynkel, guarda alguns dos momentos mais divertidos dessa sátira. Logo após a chegada de Benzino Napaloni (ou Benito Mussolini), o cumprimento entre os dois, variando entre o tradicional aperto de mão e o grandioso heil, está entre as tiradas mais inteligentes do filme. A esses dois personagens (diga-se de passagem, o ator Jack Oakie retrata os trejeitos de Mussolini de forma impagável) ainda nos guarda cenas como a das cadeiras da barbearia e a guerra de comidas regadas à pimenta – sempre clássica. O outro momento é quando se dá a troca de identidades, possibilitada pela semelhança entre o Barbeiro e o Ditador. Após ser preso em um campo de concentração, juntamente com o Comandante Schultz – a quem ele havia salvado durante a primeira guerra mundial e a quem pesavam acusações de traição ao regime –, o Barbeiro consegue fugir com o amigo e a única forma encontrada para sobreviverem está na possibilidade do adorável personagem assumir a identidade do líder Hynkel, o qual, por sua vez, se encaminhava para a realização de um grande discurso. Já sob a falsa identidade, o Barbeiro se vê diante de uma multidão e com a missão de falar diante dela, reservando para o epílogo da narrativa o momento mais sensível e bonito da história.
Diante do microfone, Chaplin abandona seu personagem e fala com o coração – fica muito claro que é o homem Charles Spencer Chaplin quem profere aquele discurso memorável. Mais que um discurso, sua fala é um manifesto contra a situação que o mundo testemunhava, baseado em um desenvolvimento incontrolável cujo resultado era a desumanização dos homens. O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Termina seu discurso retornando a seu personagem, dirigindo-se a sua amada, Hannah, com uma mensagem de otimismo que só poderia vir de um homem que fez tantas pessoas ao redor do mundo sorrirem: O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança.
Reza a lenda que o próprio Hitler teria assistido ao filme duas vezes e que teria dado boas gargalhadas. A versão dupla do DVD de O Grande Ditador conta com um documentário interessante que faz um paralelo entre a vida de Chaplin e Hitler e, além disso, conta com uma preciosidade encontrada na Suíça, onde Chaplin morou após ser expulso, injustamente, dos EUA, o making of do filme em cores. Recomendado para todas as idades em qualquer época.
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