quarta-feira, 31 de agosto de 2011

JOSÉ E PILAR (Portugal, Espanha e Brasil – 2010)


Direção: Miguel Gonçalves Mendes

Existem filmes aos quais as palavras não se aplicam no sentido de defini-los. Assistir, por si só, torna-se a definição, uma vez que a sensação proveniente da tela (e, claro, das caixas de som) encerra qualquer possibilidade afim. Ao se tratar de um documentário recheado de declarações do escritor português José Saramago, tem-se certeza de que o filme fala por si próprio. Isso, claro, se a produção tiver sensibilidade para construir uma narrativa capaz. Felizmente, José e Pilar é competente nesse sentido – o que acaba transformando a película em um grande tributo a seu protagonista, tendo em vista seu lançamento pouco após a sua morte, ocorrida em junho de 2010.
            Partindo do processo de concepção do romance A Viagem do Elefante, Miguel Gonçalves Mendes nos apresenta o dia a dia de Saramago juntamente com sua esposa, a jornalista Pilar Del Rio. Logo percebemos que a ela cabe a responsabilidade de filtrar correspondências e compromissos do marido cuja idade avançada surge como elemento fundamental para tais incumbências e esse fato faz com que Pilar não hesite em lançar mão de seu gênio forte no intuito de equilibrar o bem estar e a agenda cheia de Saramago. Já a Saramago, cabe sua consciência de escritor e cidadão, ressaltada por suas divagações acerca dos mais diversos assuntos – seja política, religião, família, vida e morte. Aliás, a morte é um dos temas mais visitados pelo documentário – ou, melhor, por Saramago. Não são raras as vezes em que testemunhamos o ganhador do Nobel de Literatura refletindo sobre o tempo que lhe resta, aquilo que gostaria de fazer e sua negação ao medo à morte – algo, até certo ponto, discutível, pois os próprios acontecimentos vistos no filme o levam a refletir sobre o fim da vida e suas conseqüências em sua obra e família.
            Outro elemento importante – talvez o mais – está ligado ao relacionamento entre marido e mulher. O amor torna-se uma construção extremamente poética em José e Pilar, estruturada em mínimas cenas ou planos que nunca assumem um caráter piegas. A cumplicidade observada no casal é deslumbrante e ela cresce à medida que testemunhamos certo definhamento em Saramago, fruto das constantes viagens que fez em seus últimos anos de vida.
            Aberto às críticas, crítico feroz da Igreja, gênio da escrita, José Saramago teve papel fundamental na divulgação da literatura lusófona ao redor do mundo e, por isso, torna-se irônico perceber o grau de indiferença proveniente de sua terra natal durante tantos anos – algo que só foi retratado poucos tempo antes de seu falecimento. A política também faz parte do filme e, como resulta sempre em discussões calorosas, não se pode deixar de fazer menção à cena em que marido e mulher discutem suas preferências para a presidência dos Estados Unidos.
            José e Pilar é um filme premiado por excelência. Além de contar com depoimentos de Saramago e Pilar, ainda possui uma fotografia muito eficaz e planos muito bem construídos; reparem no momento em que Pilar dá uma de diretora (ao melhor estilo Leni Riefenstahl) e pede ao motorista que pare o carro para que possa trocar de lugar com o esposo a fim de possibilitar ao câmera um plano mais simbólico.
            Mesmo morto, a obra de Saramago ainda perdurará por muito tempo (pela minha eternidade, pelo menos) e o documentário de Miguel Gonçalves Mendes pode ser reconhecido como um dos responsáveis por eternizar esse gênio da língua portuguesa – gênio da Literatura.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

INCÊNDIOS (Incendies; Canadá – 2010)

Direção: Denis Villeneuve
            É difícil digerir Incêndios – estamos falando de uma rede de informações que resgatam um passado complexo de ser entendido, uma vez que envolve um híbrido de convicção polítco-religiosa com a natureza instintiva da figura materna. E, se a sensação de perplexidade toma o espectador após os minutos finais, tal fato é fruto da construção narrativa apresentada por Denis Villeneuve que garantiu ao Canadá uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro este ano.
            A partir da leitura do testamento de sua mãe, Jeanne e Simon Marwan descobrem que o pai o qual achavam estar morto, na verdade, ainda está vivo e que, além disso, possuem um irmão desconhecido. O último pedido de Nawal é que os filhos entreguem duas cartas, uma ao pai e outra ao irmão desconhecidos deles no intuito de tornar cumprida uma promessa distante no tempo. Realizar esse desejo materno constitui-se em um mergulho intenso em uma série de informações que revelam mais uma pessoa desconhecida para o casal de irmãos gêmeos – dessa vez, a própria mãe.
            Sobre as terras áridas do Líbano (o filme nunca deixa claro que se trata do país, mas a inspiração fica clara no decorrer da narrativa), Incêndios divide-se em duas frentes narrativas que vão se conectando no desenrolar da ação. Por um lado, acompanhamos as investidas de Jeanne e, posteriormente Simon, de coletar informações sobre sua mãe a fim de que possam encontrar aqueles que procuram. Em paralelo, testemunhamos a história de Nawal desde as origens em sua aldeia até as transformações que sofre – influência do caldeirão político a que o Líbano se transformou no final da década de setenta. Interessante notar como a atmosfera histórica que permeia a narrativa serve de motivação para as escolhas que Nawal realiza. Isso se dá, tendo em vista que não se trata de um filme sobre a guerra do Líbano e, sim, sobre as escolhas – muitas vezes ilógicas – a que uma mãe é levada por sua própria natureza materna e humana. Dessa forma, a origem cristã de Nawal é irrelevante para ela em meio a tantos conflitos religiosos quando o assunto é seu filho perdido.
            Em meio ao terror da guerra que transforma seres humanos em assassinos em potencial – o filme mostra isso de forma eficaz, apresentando ações covardes em ambos os lados (cristãos e muçulmanos) – o casal de irmãos gêmeos vão desenhando a própria origem em uma forma de retratação póstuma montada por Nawal. Entretanto, essa conclusão só é possível após as revelações finais do roteiro, as quais possuem efeito semelhante a um soco na cara, tamanho o impacto de tais informações nas personagens e no espectador. Convincente em sua estrutura, Incêndios possui um dos melhores desfechos da safra de filmes do ano passado e, se certas coincidências parecem fugir à normalidade, é porque nem sempre um mais um tem dois como resultado.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

CREPÚSCULO DOS DEUSES (Sunset Boulevard – EUA, 1950)

Direção: Billy Wilder

            Se Charles Foster Kane, lendário protagonista daquele que é considerado o melhor filme de todos os tempos – Cidadão Kane, abriu as portas da mídia impressa norte-americana, mostrando aos mundos seus podres e os métodos nem sempre honestos de se alcançar o poder, Norma Desmond  tem o mesmo mérito em relação à indústria cinematográfica dos Estados Unidos pós Star System. Diante disso, é fácil entender o porquê de Crepúsculo dos Deuses ser um filme ousado – mesmo hoje – e o fato de não ter sido unanimidade à época de seu lançamento.
            Joe Gillis é um roteirista à beira do fracasso que não consegue convencer nenhum estúdio a produzir seus roteiros. Endividado e perseguido por alguns agiotas, Gillis acaba encontrando refúgio em uma enorme mansão que pensa estar abandonada. Lá ele conhece uma antiga atriz de filmes mudos, Norma Desmond, cuja vida limita-se a ficar enclausurada em sua casa juntamente com seu criado Max Von Mayerling. A partir desse encontro, eles tentarão reconstruir suas carreiras juntos, criando uma relação entre os dois que ultrapassa os limites do meramente profissional.
Buscando fugir da linguagem narrativa clássica – uma série de convenções da sintaxe cinematográfica que dominam, até hoje, a forma de se contar uma história em filme e cuja instituição é direcionada ao nome de D. W. Griffith e seu filme O Nascimento de uma Nação – o filme de Billy Wilder começa pelo fim, quando a polícia chega a casa de Desmond para investigar uma denúncia de assassinato. Boiando na piscina da residência está o corpo de Gillis, o qual inicia – mesmo morto – a narrar todos os acontecimentos que acompanharemos dali em diante. O famoso narrador-defunto que Machado de Assis trouxe em seu famoso romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e que causou certo espanto no limiar do século passado em Beleza Americana se torna um elemento ousado para a época que Wilder lançou sua película. Além disso, vale atentar para a grandiosidade da direção de arte, representada, principalmente, pela mansão de Desmond – a transformação que eleva do fracasso da piscina cheia de ratos e da quadra de tênis entregue ao abandono à redenção testemunhada nesses cenários. Entretanto, se engana quem pensa que essa transformação acompanha uma redenção dos personagens protagonistas, quando, na verdade, ela está intimamente relacionada, unicamente, à emoção de Norma Desmond, que encontra em Gillis uma válvula de escape para a carência que experimenta ao longo dos seus solitários anos, além dele representar uma nova chance para ela no cinema.
E, se citamos Norma Desmond, não podemos deixar de lado a magistral composição dada a ela pela atriz Gloria Swanson – entregue emocionalmente e fisicamente à personagem. Swanson oferece a Desmond um ar de diva, uma estrela cadente que se recusa a apagar e seus movimentos grandiosos e, muitas vezes exagerados, remetem ao próprio status de grande atriz do cinema mudo que ela insiste em ostentar. Aliás, essa condição é traduzida por uma das melhores falas do filme – e, por que não, do cinema – ela, ao ser abordada por Gillis como uma atriz que era grande nos tempos de cinema mudo, responde sem titubear: Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos. Já Joe Gillis, vivido pelo ator William Holden, o qual poderia ser suprimido por Swanson, consegue manter o embate sempre à altura, lançando mão de um olhar irônico que denuncia sua crença em uma superioridade que não possui. É justamente seu convívio com o fracasso que fará com que reveja seus métodos e aceite, inclusive, a ajuda de outra escritora para criar um novo roteiro.
Muito além de um simples filme sobre dois profissionais da sétima arte em busca do reconhecimento de seus trabalhos, Crepúsculo dos Deuses é uma grande e ácida crítica aos grandes estúdios de Hollywood e seus métodos que, na busca pelo lucro desenfreado, acabam desvalorizando o trabalho de inúmeros profissionais ou jogando diversos de seus astros ao ostracismo. Billy Wilder teve a coragem de mostrar o que há por debaixo dos tapetes vermelhos e a presença de um grande diretor de cinema como Cecil B. DeMille em cena, interpretando ele mesmo, só oferece credibilidade à denúncia que testemunhamos na tela. Sem dúvida, um dos meus filmes favoritos de todos os tempos e não posso terminar essa resenha sem chamar atenção para a última seqüência da película, a qual, óbvio, não irei contar e, sim, elogiar, pois a sensação que tive ao assisti-la é a mesma que todos aqueles personagens demonstram como testemunhas da descida de Norma Desmond, ou seria Salomé, pelas escadarias rumo ao seu grande close. Seqüência, essa, que se manifesta como extremamente atual, uma vez que podemos nos perguntar se as estrelas de cinema, hoje, são mais conhecidas pela sua competência em cena ou se pela vida íntima e seus escândalos intrínsecos.  

terça-feira, 3 de maio de 2011

O BANHEIRO DO PAPA (El Baño Del Papa – Uruguai, 2009)

Direção: César Charlone e Enrique Fernández

            César Charlone é um grande conhecido do cinema brasileiro. É ele quem assina a premiadíssima fotografia de Cidade de Deus com a qual conseguiu, inclusive, uma das quatro indicações ao Oscar que o filme nacional recebeu no ano de 2004. Uruguaio de nascença, Charlone aventurou-se pela primeira vez na direção cinematográfica nessa pequena obra-prima intitulada O Banheiro do Papa, contando com o auxílio de Enrique Fernández nesse trabalho. Os dois também assinam o roteiro da película o qual surge como o ponto alto dessa narrativa audiovisual cuja temática abrange questões bem atuais e, também, bem universais.
            Um pequeno vilarejo uruguaio próximo à fronteira com o Brasil está em polvorosa com a proximidade da visita do papa João Paulo II ao lugar. O evento é encarado como histórico para a região e abre a possibilidade da cidadezinha receber milhares de turistas vindos de terras brasileiras – o que será explorado pelos habitantes do local como fonte de renda para a população. A ideia é que, com a chegada dos fiéis do país vizinho, ocorra grande procura por alimentos e, assim, os moradores resolvem usar seus dotes culinários para vender os mais variados tipos de comida. Para Beto, entretanto, o plano segue outro caminho. Sabendo que, com tantos alimentos sendo servidos, os turistas precisarão realizar suas necessidades fisiológicas, ele decide construir um banheiro para utilizar como serviço higiênico aos visitantes. A questão é que existe a necessidade de adquirir dinheiro para a obra e esse se torna o grande desafio dele.
            A construção do personagem protagonista, Beto, é de forte sensibilidade. A atuação de César Trancoso nunca se torna exagerada, possibilitando momentos de angústia e humor de forma natural. Aliás, todo o desenvolvimento da ação dramática transcorre de forma natural – o que faz com que os questionamentos sejam apresentados de forma sutil, porém eficiente. Interessante notar como uma pequena cidade, cuja principal fonte de renda é proveniente do contrabando de produtos brasileiros, coloque suas esperanças em uma visita de um dia do papa em seu território. Mais interessante é o fato dessa esperança ser produto de uma especulação midiática em torno do número de brasileiros que se espera durante a visita de Sua Santidade. A questão da mídia é muito bem colocada na narrativa e, sempre suscitada por Silvia – filha de Beto – cujo sonho maior é trabalhar como jornalista e, dessa forma, torna-se elemento motivador para seus pais juntarem dinheiro, já que o curso que pretende realizar é dispendioso.
            Criticando o velho discurso de que grandes eventos são capazes de transformar para melhor os lugares onde são sediados, O Banheiro do Papa, surge como um alerta social, abrindo os olhos do espectador para uma questão simples: não adianta basear as melhorias sociais em um evento singular, mas em um conjunto de ações contínuas – algo muito bem explorado por um conjunto de imagens que surgem em uma sequência no ato final do filme. E se a primeira vista, a narrativa parece caminhar para o melodrama, um dos grandes feitos do roteiro é proporcionar momentos bem humorados na trama. Seria muito bom que, em época de preparação para Copa do Mundo e Olimpíadas, os líderes políticos brasileiros se permitissem assistir a essa bela obra do cinema latino-americano. Mas será que haveria sensibilidade para isso? Temos uma longa década para nos certificarmos disso.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A ESPINHA DO DIABO (El Espinazo Del Diablo – México, 2001)

Direção: Guillermo Del Toro

            Se em filmes como O Pequeno Nicolau a inocência infantil é capaz de deturpar o universo dos adultos, em histórias como a apresentada em A Espinha do Diabo ocorre justamente o contrário. O universo adulto, muitas vezes cercado de conflitos armados e interesses ideológicos, acabam por cercear as manifestações de caráter infantil em um determinismo extremamente cruel. Interessante notar que, apesar de o cineasta mexicano Guillermo Del Toro ambientar seus mais famosos filmes nessas condições, a infância, em suas narrativas, ainda resiste às mutilações a que é exposta como que em uma experiência de sobrevivência. Assim como O Labirinto do Fauno, sua obra mais bem sucedida, A Espinha do Diabo transcorre no período da guerra civil espanhola. Em um orfanato situado no meio do nada, um grupo de rapazes é mantido por Carmen e pelo Dr. Casares. Muito mais que simples administradores do local, os dois auxiliam a guerrilha que luta contra o governo espanhol, mantendo os filhos dos guerrilheiros sob sua tutela e escondendo o ouro que sustenta a luta armada. Entretanto o ambiente parece cercado de paranormalidade, já que os próprios internos reclamam da presença de um fantasma – situação que parece se agravar com a chegada de Carlos, o mais novo interno do local.
            Logo que chega, Carlos passa a ser perseguido por uma entidade fantasmagórica, uma criança esguia que exala sangue por uma ferida na cabeça – aliás, um detalhe realmente assustador em sua imagem. Com o tempo, Carlos começa a descobrir que essa assombração pode se tratar de um antigo interno desaparecido chamado Santi e que o sumiço do rapaz esconde mais informações do que poderia saber e que envolvem outros habitantes do orfanato. Embalados por uma bela trilha sonora, a poesia visual de Del Toro é completada por uma eficiente direção de arte – adoro o quarto dos internos – e uma fotografia estonteante. Interessante notar como os adultos, embora pareçam de pouca importância a princípio, possuem na dinâmica que realizam entre si a responsabilidade de definir o futuro dessas crianças. Essa questão surge como ponto fundamental da crítica à guerra e suas conseqüências nas gerações mais novas e, não obstante o conflito não se fazer presente por quase toda a narrativa, a simbologia da guerra está sempre diante dos nossos olhos, representado pela bomba cravada no chão do pátio – praticamente um monumento à destruição.

            Nota-se, também, como, mesmo imersos a essa realidade, as crianças demonstram total afeto umas pelas outras e, da mesma forma, para com Carmen e Casares – mesmo que enfrentem conflitos naturais da idade como aqueles vivenciados por Carlos e Jaime. Apesar de não expressar os toques de genialidade testemunhados em O Labirinto do Fauno, A Espinha do Diabo aparece, hoje, como uma correta preparação para o filme que viria cinco anos depois. Del Toro prova sua competência como cineasta, ajudando o cinema mexicano – de excelência incontestável – a fugir dos estereótipos impostos à produção audiovisual do país pelas novelas que de lá importamos.

sábado, 30 de abril de 2011

NA CAMA (En la cama – Chile, 2005)

Direção: Matías Bize

            Em um universo tão amplo de relacionamentos como o que vivemos, é difícil explicar os significados que cada pessoa exerce sobre nós – constitui uma dinâmica complexa, capaz de causar graves angústias se não soubermos administrá-la. Por mais difícil que possa ser aceitar tal condição, a verdade é que muitos dos laços que criamos ao longo de nossas vidas, mais cedo ou mais tarde, acabam por serem cortados; o que não quer dizer que eles não tenham trazido perdas e/ou ganhos. É mais ou menos essa a sensação que transparece ao assistir Na cama. O filme chileno acompanha algumas horas na vida de duas pessoas que dividem momentos íntimos em um motel – e devem-se entender momentos íntimos tanto como sexo quanto como as aflições que permeiam as consciências desses personagens.
            Imersos em um momento meramente casual, logo no início do filme constatamos o curioso fato de os dois personagens, mesmo após transarem, não saberem os nomes um do outro. Dessa forma, a própria narrativa nos oferece a possibilidade de conhecê-los de uma forma mais intimista, além de construir uma crítica à cultura do primeiro faz depois pergunta. Outro elemento curioso dessa apresentação é o fato de, assim como aqueles que estão em cena, termos a necessidade de confiar naqueles dois, pois – a princípio – nada confirma a sinceridade deles ao se apresentarem como Bruno e Daniela. E se a confiança parece uma saída ideal – até pelo fato de acabarem de vivenciar uma experiência íntima – desnudar suas aflições e carências é um movimento quase que natural e, assim, os dois sentem uma necessidade quase incontrolável de perguntar diversas coisas entre si.  
Esse é o ritmo do filme de Matías Bize. Limitado a uma suíte de motel e a dois personagens, o diretor chileno encontrou saídas interessantes para a decupagem do roteiro – planos próximos, além de geométricos são comuns ao longo da narrativa. Além disso, a câmera sabe explorar bem os espelhos do quarto e a edição faz um bom trabalho com os cortes secos – em especial no momento em que Bruno fala a Daniela sobre sua teoria do cinema em um tipo de metalinguagem disfarçada. Quanto à trilha sonora, chama a atenção o uso diegético de uma música que, por intermédio da edição de som, acaba por tornar-se extra-diegética, mesmo com a personagem dançando e cantando a canção que, sabemos, vem do rádio. 
Alternando momentos de prazer e de conflito, Na cama acaba se constituindo como um belo manual sobre relacionamentos, pautando a sinceridade como um artifício importante para a continuidade, ao mesmo tempo em que se torna um movimento deveras difícil de realizar. Dessa forma, é interessante notar como a noção da não continuidade da relação entre os dois acaba se tornando uma motivação para trazerem a tona seus conflitos. Toda essa dinâmica é apresentada por Bize de uma forma competente, sem nunca cair no tédio e, embora certas ações pareçam extremamente padronizadas – se Bruno sai do quarto e Daniela inspeciona a carteira dele, então se Daniela sai dor quarto, Bruno tem que olhar a bolsa dela – elas não acabam por prejudicar o desenvolvimento da ação, que, inclusive, foca na tentativa deles de descobrirem um ao outro em uma experiência de auto descoberta.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

ABUTRES (Carancho – Argentina, 2010)

Direção: Pablo Trapero

            Ao dissertar sobre o filme peruano A teta assustada, comentei sobre a visibilidade que o cinema latino-americano vem recebendo nos últimos anos junto à cinematografia internacional. Também comentei sobre o peso que o fator histórico e suas conseqüências exercem nas narrativas locais, além de citar a recente vitória argentina no Oscar de melhor filme estrangeiro. Pois bem, na minha humilde opinião, um dos fatores que proporcionam à Argentina um posicionamento levemente superior aos filmes do restante da América Latina é a superação desse passado sombrio e, diferentemente da maioria dos cinemas da região, o cinema argentino volta seu olhar para o presente em narrativas mais universais – mesmo que questões sociais apareçam como ponto fundamental para o desenvolvimento da ação dramática. Dessa forma, de uns anos para cá, a cinematografia dos nossos vizinhos apresentou obras de extrema qualidade narrativa e técnica, filmes como: Nove rainhas, O filho da noiva, O segredo dos seus olhos e La leonera – este último dirigido pelo mesmo Pablo Trapero de Abutres.
            Mesmo sem conhecer a fundo o trabalho de Trapero, ao que parece, ele tem forte preocupação com histórias voltadas para o lado sombrio da sociedade argentina, demonstrando alguns dos problemas locais. Se em La leonera, ele voltou seu olhar para o sistema carcerário argentino, em Abutres a questão está em um tipo de máfia do seguro cuja ação está em se aproveitar da fragilidade de pessoas envolvidas em acidentes de trânsito. Sosa – interpretado por Ricardo Darín, ator que domina o cenário cinematográfico argentino – é um advogado que transita entre acidentes de carro no intuito de atrair clientela para o mercado sujo em que trabalha. Em um desses acidentes, ele conhece a médica Luján que divide seu pouco tempo entre atender em um hospital público e trabalhar em uma ambulância, resgatando acidentados nas ruas – algo que dificulta seu descanso, já que sua jornada de trabalho ultrapassa, em muito, o desumano.
            A questão é que Sosa parece sofrer com peso na consciência ao realizar tais trabalhos o que causa certa insatisfação de sua parte e o desejo de sair desse mercado. Entretanto por uma ironia do destino, ele acaba se afundando na ilegalidade e envolvendo a jovem médica naquele que deseja ser seu último serviço para a agência onde trabalha. Utilizando planos fechados, Trapero acaba por oferecer ao espectador um pouco das angústias que cercam as personagens, valorizadas por um roteiro eficiente e atuações corretas da dupla protagonista. Além disso, o diretor evidencia o poder que a corrupção tem em uma dinâmica de abuso dos mais pobres e menos informados – e ressalto o que disse anteriormente, fragilizados pela situação em que se encontram. Tecnicamente bem realizado, Abutres conta com um plano sequência muito interessante em sua cena final, provando o gosto que os cineastas argentinos têm por esse artifício cinematográfico. E já que tocamos na questão do plano sequência, é impossível não comparar Abutres com o superior O Segredo dos seus olhos, que – além de ter Ricardo Darín como protagonista – possui um excitante plano sequência em um estádio de futebol. Embora o filme de Trapero não exprima a genialidade de seu conterrâneo oscarizado, isso não surge como um problema, já que Abutres é um filme extremamente humano em sua temática e suficientemente bem realizado do ponto de vista técnico, provando que o cinema argentino continua caminhando na rota certa. 

quinta-feira, 28 de abril de 2011

DZI CROQUETTES (Brasil, 2009)

Direção: Tatiana Issa e Raphael Alvarez

Em épocas de repressão ditatorial, quando os direitos à liberdade estavam cerceados pela censura e, cada vez mais, o discurso conservador era imposto como verdade inquestionável, treze bailarinos ousaram, com alegria e com dança, proporcionar momentos libertários e questionadores em espetáculos que marcaram época nos anos setenta. Por gerar forte influência na classe artística desde então, é muito triste notar que as lembranças desse mito foram se apagando com o passar dos anos e, assim, é de grande importância o resgate realizado pelo documentário de Tatiana Issa e Raphael Alvarez cujo título remete justamente ao nome desse grupo de bailarinos: os ou as Dzi Croquettes.
O fato de indeterminar gramaticalmente o gênero de Dzi Croquettes é fruto de um dos maiores questionamentos do grupo e de seus espetáculos. Ao explorarem as convenções do gênero de forma a desconstruí-las em números dotados de grande ironia, eles ou elas acabavam por proporcionar ao público um mergulho na sexualidade como experiência social – abrindo as portas para a aceitação das diferenças e o respeito irrestrito. Homens dotados de marcas genuinamente masculinas como pêlos pelo corpo, travestidos em roupas de mulher e sensualizando seus movimentos em clara referência ao universo feminino era uma característica vibrante dos espetáculos – fora o aparato de produção artística com figurinos, cenários e maquiagens cujo efeito causava frisson nos espectadores. E o fato de tratar essas questões com enorme liberdade e deboche fazia com que os números se constituíssem como fortes críticas aos costumes da sociedade brasileira e da liderança ditatorial que nos governava.
Rodeado por uma aura de nostalgia, Dzi Croquettes reúne os integrantes do grupo, apresentando em depoimentos toda a história do movimento alternada com imagens originais da época. Além disso, o documentário conta com entrevistas realizadas com vários integrantes da classe artística brasileira dos anos setenta e oitenta que tiveram ou têm suas carreiras influenciadas pelo(a)s Dzi Croquettes – dentre os quais: Marília Pera, Nelson Motta, Ney Matogrosso, Jorge Fernando, Miguel Falabella, As Frenéticas e Liza Minelli (madrinha do grupo, além de tê-los salvo da desgraça em Paris). O projeto de Tatiana Issa, muito além de uma homenagem àqueles dançarinos que a rodeava quando criança, é um resgate da própria memória pessoal, já que seu pai acompanhava os espetáculos, trabalhando como contra-regra. Pode-se ressaltar, também, ao justíssimo tributo que o filme realiza ao coreógrafo Lennie Dale. Americano radicado no Brasil, Dale teve papel importantíssimo na cultura nacional, não apenas por coreografar a bossa nova, mas também por treinar os trejeitos de Elis Regina no palco e influenciar uma gama enorme de artistas com o passar dos anos.
Dzi Croquettes se torna um belo registro histórico de um recorte da cultura nacional que foi esquecido pelo tempo e que, ainda hoje, exerce tanta importância para movimentos gays, de gênero e de dança. O documentário poderia ser um bom início desse resgate do passado, mas, para isso, é necessário que essa leitura da história não pare por aqui.   

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A TETA ASSUSTADA / O LEITE DA AMARGURA (La Teta Asustada – Peru, 2009)

Direção: Claudia Llosa

            A produção peruana O leite da amargura ou A teta assustada alcançou um feito inédito para seu país ao conquistar uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2010. O fato de ter perdido o prêmio para uma produção argentina (O segredo de seus olhos) demonstra a valorização que o cinema latino-americano vem recebendo nos festivais e circuitos internacionais. No filme de Claudia Llosa, bem como em vários filmes de nossa região, a questão histórica da ditadura e suas conseqüências no desenvolvimento social das gerações seguintes têm um papel fundamental para a narrativa. Fausta é uma jovem cuja mãe foi violentada no período ditatorial, recebendo, através do leite materno, o medo proveniente daquela violência que a impede de se relacionar socialmente de uma forma normal. Os moradores da região, incluindo seu tio, denominam essa síndrome de a teta assustada, desacreditando no diagnóstico de um médico que afirma que a tal doença não passa de um mito.
            Além de ser um registro curioso sobre o mal que as ditaduras exerceram sobre seus países, O leite da amargura também se constitui como um bom estudo das conseqüências impostas por uma cultura baseada no medo a qual pode ser responsável por ações impensadas. Provavelmente criada sob o trauma de sua mãe – algo testemunhado logo na música que ela canta em seu leito de morte na primeira cena do filme – Fausta tem uma reviravolta em sua vida, uma vez que perde seu único porto seguro, representado pela figura materna. Seu medo não é um simples medo de escuro, a jovem tem dificuldades muito claras de se relacionar com as pessoas a sua volta – em especial, os homens – e tal fato acaba se tornando o grande conflito que enfrenta na tentativa de levar o corpo de sua mãe a seu antigo povoado, onde gostaria de enterrá-la. Para isso, ela acaba tendo que arranjar um emprego a fim de juntar o dinheiro necessário para esse transporte, algo que se torna complexo, já que Fausta não consegue nem caminhar na rua sem ter alguém de confiança a sua frente, servindo de referência.
            Outra questão que surge diante da jovem é a forma que encontrou como ideal para protegê-la, usando como fonte, claro, uma vizinha que vivenciou o período de abusos sexuais junto com sua mãe. Para Fausta só o asco detém os asquerosos, algo que não é tão eficaz – visto a cantada de extremo mau gosto que ela recebe durante uma cerimônia pré-nupcial de sua prima – além de ser claramente prejudicial a sua saúde.

            Apesar de trazer algumas questões interessantes para discussão, O leite da amargura parece exprimir dificuldades para desenvolvê-las e, ainda que conte com alguns planos interessantes como o “x” que separa Fausta de seu tio, eles não parecem acrescentar grande visibilidade à história. Entretanto vale ressaltar que, para um cinema pouco difundido mundo afora, o Peru conseguiu realizar um feito ótimo para o cinema latino-americano ao vencer o Urso de Ouro um ano após o Brasil conquistá-lo com Tropa de Elite, confirmando a ascensão da América Latina diante do cinema internacional.

domingo, 24 de abril de 2011

TUDO SOBRE MINHA MÃE (Todo sobre mi madre – Espanha, 1999)

Direção: Pedro Almodóvar

            Não existe dor maior para uma mãe que aquela proveniente da morte de um filho. Essa é uma verdade inexorável, experimentada por inúmeras mulheres ao redor do mundo e elas, as mulheres, são uma das grandes paixões do diretor espanhol Pedro Almodóvar. Não a mulher cristalizada em um conceito de gênero, mas aquela que pode ser experimentada como estado de espírito – em suas forças e fraquezas; em sua feminilidade liberta dos grilhões da sociedade. Tudo sobre minha mãe é uma homenagem, mais que merecida – mais que bela – a essa mulher, digamos, universalista.
            Manuela é uma enfermeira que, como presente pelo aniversário de dezessete anos de seu filho Esteban – um jovem e criativo escritor que almeja contar em uma história tudo sobre sua mãe, mas que tem dificuldades para isso, pois não consegue ela lhe fale sobre seu pai – o leva ao teatro para assistir a uma encenação de Um bonde chamado desejo. Após a peça, o rapaz convence sua mãe de esperar a atriz Huma Rojo a fim de pedir-lhe um autógrafo, mas ao tentar alcançá-la, ele acaba sendo atropelado, o que causa sua morte. É a partir da perda do filho que Manuela volta para Barcelona no intuito de encontrar o pai dele – uma travesti chamada Lola – para contar-lhe o ocorrido. Entretanto, ao chegar à cidade catalã, ela descobre que o pai de seu filho está desaparecido e passará a contar com a ajuda de Agrado – uma amiga em comum que tinha com Lola – da jovem Rosa, uma freira que auxilia pessoas necessitadas e, que, por ironia do destino, encontra-se, ela mesma, necessitada e da própria Huma Rojo que está no local encenando Um bonde chamado desejo para superar sua dor de mãe.
Questões referentes ao retorno ou à busca de elementos do passado são comuns na filmografia de Almodóvar – vide filmes como Má Educação e Volver – e, no caso de Tudo sobre minha mãe, será fundamental para desenvolver sua ação dramática. É a partir de seu retorno a Barcelona que Manuela se confronta com as dificuldades do universo feminino e é com a ajuda das pessoas as quais a cercam que ela será capaz de encontrar forças para encarar sua realidade e, também, para ajudar suas amigas – antigas ou novas. Toda essa complexa lógica de personagens é conduzida com a maestria de Almodóvar que, mais uma vez, não hesita em utilizar elementos de arte tão bem construídos em suas cores vibrantes – marca de seu cinema. Contando novamente com a parceria de Alberto Iglesias, a trilha sonora retrata as angústias vivenciadas por essas mulheres de uma forma que poderia soar exagerada nas mãos de um cineasta pouco competente – não é o caso de Almodóvar.
Outra jogada de mestre do diretor espanhol está no seu roteiro cheio de referências como a própria peça encenada e visitada em vários momentos no filme. A ligação que Manuela tem com a personagem Stela vai muito além da recordação de tê-la interpretado quando jovem; a ligação que as duas possuem está na própria constituição de Stela como uma mulher que precisa se libertar dos grilhões impostos a ela por um homem bruto. Além disso, existe a grande referência de Tudo sobre minha mãe que está no filme A Malvada cujo título original All about Eve (Tudo sobre Eve) em nada se parece com sua tradução – tanto no Brasil como na Espanha – servindo de base para o nome do filme de Almodóvar. O próprio Esteban, no início da narrativa critica essa tradução enquanto assiste à película na televisão com sua mãe, sendo que, no decorrer da história de Manuela, o filme com Bette Davis terá um papel de identificação muito importante com a protagonista de Almodóvar.
Um filme complexo, mas muito bem realizado – talvez a obra-prima de Almodóvar. Mais que uma homenagem às mulheres de todo mundo, Tudo sobre minha mãe é um incrível estudo de personagens, envolvendo questões bem atuais como a prostituição, as drogas e a aids, sobre a superação das diferenças e das mágoas em detrimento da compaixão e do respeito e, acima de tudo, sobre a maior virtude o qual, em algum grau, existe em todas as mulheres – a de ser mãe.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

GATO PRETO, GATO BRANCO (Crna mačka, beli mačor – Iugoslávia/Sérvia, 1998)

Direção: Emir Kusturica

 

            Confesso que foi difícil determinar a nacionalidade do filme de Emir Kusturica. A razão é simplesmente a complexa história recente dos países da região dos Bálcãs que, após o fim do domínio soviético, iniciou um processo de desintegração – marcado por guerras sangrentas e, até genocídios – resultando no desaparecimento da Iugoslávia através do seu desmembramento em várias nações como a Bósnia, a Croácia, a Eslovênia e, mais recentemente, Montenegro e Sérvia. Kusturica é de origem sérvia, mas no ano de 1998, mesmo que no meio do processo de desintegração iugoslava – mais especificamente às vésperas da Guerra do Kosovo – a Sérvia ainda era parte da Iugoslávia e, portanto, o filme pode ser considerado iugoslavo – embora também possa ser considerado sérvio. Curioso é perceber que, mesmo em meio a tantas atrocidades – muitas vezes pautadas por diferenças étnicas – o diretor sérvio responda a situação de seu país realizando um filme tão pautado no riso, na alegria e na amizade. Gato preto, gato branco é uma comédia diferente, capaz de gerar no espectador um misto de admiração e divertimento.

            Ambientado em uma aldeia cigana, o filme logo nos apresenta ao jovem Zare e seu pai Matko. A relação dos dois varia da cumplicidade entre pai e filho à divergência – especialmente pelo fato de Zare discordar de alguns métodos ilícitos utilizado pelo pai para conseguir dinheiro. Nada simboliza melhor essa relação que a cena em que Matko dá um cascudo na cabeça do filho, imediatamente seguido por um beijo (Papai te ama). Com apenas dezessete anos, Zare semeia seu primeiro amor por Ida, mas, devido a um negócio mal feito, que deixou seu pai endividado com o criminoso Dadan, o jovem se vê obrigado a casar-se com Afrodita cuja fama de joaninha não atrai em nada o rapaz. Em meio a isso tudo, ainda está um tipo de poderoso chefão da região que, também deseja reclamar uma dívida de Matko – só que, neste caso, o preço é a própria vida dele. O diretor costura (desculpas pelo trocadilho) essa situação de uma forma vibrante e ágil, inserindo situações que beiram do surreal – como o método utilizado por certa cantora para retirar um prego de uma trave de madeira – ao poético – observado na belíssima cena de Zare e Ida em um campo de girassóis.

            Trazendo um belo exemplo de valores como amizade e família, além de tratar do despertar do amor, Kusturica, praticamente, deixa uma mensagem para seus conterrâneos em tempos de guerra – tudo sendo testemunhado por aqueles que dão título ao filme e é interessante notar como a união entre preto e branco, no caso dos gatos, pode ser encarado como simbologia para a união experimentada pelos personagens do filme. Gato preto, gato branco é mais um belo exemplar de como o riso pode superar a tristeza da guerra. Impossível não dar boas gargalhadas com o que se vê na tela, mais impossível ainda não sentir um desejo incontrolável de sair pulando ao som de Bubamara.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS (4 luni, 3 săptămâni şi 2 zile – Romênia, 2007)

Direção: Cristian Mungiu

            O filme de Cristian Mungiu é o exemplar mais famoso da leva de filmes romenos que decolaram o cinema do país do leste europeu como A morte do Senhor Lazarescu e A leste de Bucareste. O posto alcançado por 4 meses, 3 semanas e 2 dias se dá pela Palma de Ouro conquistada em 2007 no Festival de Cannes – local, inclusive, fundamental para o reconhecimento do cinema romeno, onde os dois outros filmes citados foram laureados, respectivamente, com o Un certain Regard e o Camera D’or. Em alguns grupos cinematográficos, a produção fílmica da Romênia é comparada à do Brasil, tendo em vista o peso que a história dos dois países exerce sobre a ação dramática. Em 4 meses... estamos no ano de 1987 e, portanto, a nação ainda sofre influência do regime comunista soviético, sendo governada pelo líder (ditador) Nicolae Ceausescu. Na ocasião, o governo promovia uma tentativa de crescimento demográfico que, entre outras medidas, proibia terminantemente a realização de abortos sob pena de prisão e, caso o procedimento seja realizado após o quarto mês de gestação, o crime passa a ser de homicídio, aumentando a pena.
            Confiando em planos longos e no uso da câmera na mão, Mungiu nos leva a conhecer Otilia, uma jovem que divide quarto com sua amiga Gabriela em um alojamento de estudantes. Logo no início da história já testemunhamos algumas das angústias causadas pelo regime sob o qual o país se encontra. Elementos simples como cigarros, medicamentos e outros objetos são difíceis de serem adquiridos, tornando-se necessário recorrer à ilegalidade para consegui-los. Outra questão é a escassez de alguns elementos como quando uma das estudantes não possui leite para oferecer aos gatinhos que encontrou na rua ou a dificuldade de acumular dinheiro, observado nos empréstimos que são constantemente citados ao longo da narrativa ou, ainda, na maneira burocrática que Otilia consegue uma reserva em um hotel. E se é difícil viver nessas condições, pior seria com um filho, ainda mais se a gravidez for indesejada.
            Gabriela está grávida e, mesmo que de forma relutante, opta pelo aborto. Com a ajuda de Otilia. Elas chegam aos serviços de Bebe, que realiza o procedimento na ilegalidade, mas uma série de questões começa a gerar conflito nos personagens. O fato de Gabriela estar relutante em relação a sua escolha faz com que ela postergue o procedimento, aproximando sua gestação do prazo limite para tal – prazo ao qual o título do filme faz referência. Além disso, a jovem acaba por afirmar várias informações erradas ao cirurgião, dificultando a confiança entre eles – tudo testemunhado por Otilia cuja confiança na amiga também se abala, uma vez que se vê envolvida em uma situação angustiante e que culminará com o uso de favores sexuais no intuito de garantir a realização do aborto.
            A série de acontecimentos gera na protagonista, Otilia, uma série de reações subjetivas as quais, juntamente com os problemas por que passa em seu relacionamento com o namorado, nos trazem as questões que 4 meses... propõe levantar. O aborto é um assunto extremamente delicado e, por mais que possamos contrariar sua realização, não podemos negar as dificuldades éticas que experimentamos quando o tema surge tão próximo de nós. A estrutura de filme de Mungiu é típica para filmes de festival e, talvez, essa tenha sido a razão pela qual a película foi desclassificada da disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro na época, mas é inegável que se constitui como um drama eficiente.

sábado, 16 de abril de 2011

O GRANDE DITADOR (The Great Dictator – EUA; 1940)


Direção: Charlie Chaplin


            Há exatos cento e vinte e dois anos, no dia 16 de abril de 1889, nascia em Londres Charles Spencer Chaplin cujo talento, anos mais tarde, seria reconhecido em todo mundo, colocando sua imagem entre as mais marcantes do século passado e da história do cinema. Alguns dias depois, naquele mesmo ano – mais especificamente no dia 20 de abril – nascia na Áustria uma criança que receberia o nome de Adolf Hitler cujo talento discursivo seria inquestionável, não fossem suas tendências megalomaníacas e seu ódio antissemita. Essas duas figuras icônicas do século XX tinham mais em comum que a proximidade de seus nascimentos. A semelhança física entre o líder ariano com o personagem mais famoso de Chaplin, o vagabundo Carlitos, por muitas vezes foi levantada e seria explorada de forma genial pelo cineasta inglês, já radicado nos Estados Unidos.
            Já fazia mais de dez anos que o som chegara ao cinema, mas Chaplin, assim como outros atores e cineastas, ainda relutava em utilizá-lo em seus filmes. Em Tempos Modernos, chegou-se a utilizar alguns elementos sonoros, mas a voz do adorável vagabundo foi evitada até a cena icônica de Chaplin dançando e cantando em um restaurante em uma língua ininteligível – era a forma de ele aceitar a evolução, mesmo que isso pudesse significar a morte de suas gags visuais; não havia espaço para Carlitos no cinema falado. Em O Grande Ditador, o vagabundo dava lugar ao, também adorável, Barbeiro Judeu que durante a primeira guerra mundial fora responsável por salvar um colega de infantaria, sofrendo um acidente que o deixaria desacordado por um longo período de tempo, afastando-o das transformações por que passaria seu país Tomânia (clara referência à Germânia ou Alemanha). Chega ao poder o ditador Adenoid Hynkel (um dos maiores personagens da história do cinema, também interpretado por Chaplin) com sua mania de grandeza e de realizar discursos calorosos – através dos quais, Chaplin utiliza toda sua genialidade em uma imitação divertidíssima do alemão acentuada por gestuais sempre bem colocados na trama.
            Ao acordar de seu coma, o Barbeiro volta para o gueto onde encontra seus semelhantes sofrendo inúmeras perseguições, fruto de um modelo ideológico que prega o ódio a tudo que não é ariano. Lá, ele conhece a jovem Hannah, interpretada pela sempre bela Paulette Goddard (com quem Chaplin foi casado), com quem vivencia um romance sempre puro e, em vários momentos, engraçadíssimo (como na cena em que o Barbeiro desatento começa a barbear sua amada). Aliás, deve-se ressaltar que, O Grande Ditador é recheado de cenas antológicas das quais citarei apenas três.
            Em determinado momento da narrativa, o Barbeiro está fazendo a barba de um senhor enquanto ouve seu rádio. Ao som da Dança Húngara nº 5 de Brahms, Chaplin realiza os movimentos em sincronia perfeita, deixando claro que seus trejeitos visuais não seriam apagados pelo advento do som no cinema – seria bom demais se os comediantes de hoje em dia tivessem um décimo do talento observado nessa cena. Em outro momento da narrativa, em uma discussão com seu ministro Garbitsch (referência a Goebbels), Hynkel tem noção do tamanho do poder que poderá conquistar em suas investidas megalomaníacas (Aut Caesar, aut nullus. Imperador do mundo. Interessante uma de suas conclusões, que reflete uma crítica bem irônica a Hitler: Uma nação de arianos com um líder moreno). Ali se inicia o balé mais famoso do cinema: Hynkel bailando por seu enorme gabinete com um Globo Terrestre em mãos, manipulando o mundo ao bel-prazer até que ele estoure em suas mãos – uma metáfora muito bem construída por Chaplin, alertando para as possibilidades de um futuro sombrio com a escalada de Hitler ao domínio da Europa. A terceira cena é a última do filme e logo falarei sobre ela.
            Antes, existem dois momentos de O Grande Ditador que não podem passar em branco. A visita do ditador do país vizinho, a Bactéria (leia-se Itália), cujos interesses em invadir Osterlich (não consigo decidir se devo encarar como Tchecoslováquia ou como Polônia) se tornam um impasse para Hynkel, guarda alguns dos momentos mais divertidos dessa sátira. Logo após a chegada de Benzino Napaloni (ou Benito Mussolini), o cumprimento entre os dois, variando entre o tradicional aperto de mão e o grandioso heil, está entre as tiradas mais inteligentes do filme. A esses dois personagens (diga-se de passagem, o ator Jack Oakie retrata os trejeitos de Mussolini de forma impagável) ainda nos guarda cenas como a das cadeiras da barbearia e a guerra de comidas regadas à pimenta – sempre clássica. O outro momento é quando se dá a troca de identidades, possibilitada pela semelhança entre o Barbeiro e o Ditador. Após ser preso em um campo de concentração, juntamente com o Comandante Schultz – a quem ele havia salvado durante a primeira guerra mundial e a quem pesavam acusações de traição ao regime –, o Barbeiro consegue fugir com o amigo e a única forma encontrada para sobreviverem está na possibilidade do adorável personagem assumir a identidade do líder Hynkel, o qual, por sua vez, se encaminhava para a realização de um grande discurso. Já sob a falsa identidade, o Barbeiro se vê diante de uma multidão e com a missão de falar diante dela, reservando para o epílogo da narrativa o momento mais sensível e bonito da história.
            Diante do microfone, Chaplin abandona seu personagem e fala com o coração – fica muito claro que é o homem Charles Spencer Chaplin quem profere aquele discurso memorável. Mais que um discurso, sua fala é um manifesto contra a situação que o mundo testemunhava, baseado em um desenvolvimento incontrolável cujo resultado era a desumanização dos homens. O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Termina seu discurso retornando a seu personagem, dirigindo-se a sua amada, Hannah, com uma mensagem de otimismo que só poderia vir de um homem que fez tantas pessoas ao redor do mundo sorrirem: O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança.
            Reza a lenda que o próprio Hitler teria assistido ao filme duas vezes e que teria dado boas gargalhadas. A versão dupla do DVD de O Grande Ditador conta com um documentário interessante que faz um paralelo entre a vida de Chaplin e Hitler e, além disso, conta com uma preciosidade encontrada na Suíça, onde Chaplin morou após ser expulso, injustamente, dos EUA, o making of do filme em cores. Recomendado para todas as idades em qualquer época.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

O SILÊNCIO DE LORNA (Le Silence de Lorna – Bélgica; 2008)

Direção: Jean-Pierre e Luc Dardenne

            O Silêncio de Lorna rendeu a seus diretores, a dupla de irmãos belga Jean-Pierre e Luc Dardenne, seu quinto prêmio em Cannes. Apesar de não repetir o feito de Rosetta e A Criança, vencedores do prêmio máximo do festival em 1999 e 2005 respectivamente, o filme de 2008 conquistou a categoria de melhor roteiro. O roteiro, aliás, é uma das maiores preocupações desses diretores, sendo responsável pela base estrutural das boas interpretações que possam transmitir ao espectador um pouco das angústias que permeiam a dura realidade que nos cerca.
A personagem-título do filme é uma albanesa a qual encontrou em um casamento com um jovem drogado a chance de possuir cidadania belga. Como é possível presumir, o matrimônio não passa de uma fachada cercada de interesses que envolvem marido – Claudy –, esposa – Lorna – e um tipo de máfia da imigração, representado pelo taxista Fabio. O plano é que o marido de Lorna, por ser drogado, não tenha um futuro muito longo, abrindo as portas para que ela possa casar-se novamente com um russo interessado na cidadania local – o que renderia bons lucros a jovem, possibilitando a ela o sonho de abrir um bar junto com seu verdadeiro namorado. Um negócio muito simples, não fosse o fato de que o dinheiro ignora os laços e condições humanas.
Construída como uma mulher que busca manter o controle da situação, Lorna prefere entregar-se ao silêncio, concordando com o que lhe é proposto, mesmo que no momento oportuno venha a agir conforme sua preferência. Sua busca pelo controle acaba se tornando um problema, levando-a a agir de forma impensada para alcançar seus objetivos. Ao contrário do que é planejado para sua situação, Lorna deseja conseguir o divórcio de seu marido o mais rápido possível – primeiro por não agüentar mais o estado do rapaz, sempre entregue às drogas e segundo por preferir vê-lo vivo a esperar uma overdose, cada vez mais, provável. Por outro lado, a atitude da protagonista em agir por conta própria acaba indo de encontro aos intuitos de Fabio, minando a confiança que ele deposita nela. A partir de então, Lorna se vê diante de uma situação conflitante, já que percebe que aqueles que estão a sua volta a transformaram e a Claudy, a quem o tempo todo se referem como o drogado, em meras moedas de troca.
Jérémie Renier, em sua atuação como o viciado Claudy, entrega um personagem muito completo em seu conflito emocional com as drogas, em sua carência que o faz sustentar-se emocionalmente na figura da esposa e na magreza que teve que alcançar para o papel – a figura de Renier neste filme nem de longe lembra a que testemunhamos em A Criança –; e sua atuação rende alguns dos melhores momentos do filme.  
Apostando em planos longos, capazes de revelar algumas angústias do cotidiano, os irmãos Dardenne conceberam uma obra muito interessante, embora seu alcance não se compare ao de A Criança

domingo, 10 de abril de 2011

O PEQUENO NICOLAU (Le Petit Nicolas; França – 2009)

Direção: Laurent Tirard

            No início dessa divertida comédia francesa, o jovem Nicolau é abordado em sua escola pela pergunta mais tradicional da infância: o que vai ser quando crescer. Incomodado por não estar seguro sobre o tema, o menino olha a sua volta, percebendo – mesmo que de forma infantil – que seus colegas já parecem ter opções bem consolidadas para o futuro. Logo nesse prólogo – ao melhor estilo Amelié Poulain – mergulhamos em um universo muito agradável o qual constituirá a base estética e narrativa do filme de Laurent Tirard baseado na obra homônima de Jean-Jacques Sempé e René Goscinny.
            O incômodo gerado em Nicolau parte da satisfação que vivencia junto a seus pais e colegas, colocando em cheque a obrigação que tem de pensar em mudanças no futuro – seu desejo maior é que sua vida permaneça do jeito que é. Tal fato nos leva a refletir sobre as reais necessidades que as crianças têm de se preocuparem com a vida adulta em vez de gastarem seu tempo sendo o que elas são. Entretanto a inocência particular do protagonista dessa película faz com que o mundo adulto ganhe outras conotações e, por exemplo, se um amigo sonha em ser diplomata, isso se dá pelo fato de participar de inúmeros banquetes onde poderá realizar aquilo que mais gosta: comer.
            E se o grande desejo de Nicolau está na manutenção do seu estilo de vida, o grande conflito surge quando passa a acreditar em uma mudança radical. Ao ouvir uma conversa dos pais, o rapaz acha que ganhará um irmão mais novo o que representaria a perda da atenção que recebe e, até mesmo, a possibilidade de ser abandonado em uma floresta. Para evitar essa tragédia, o pequeno apela para inúmeras tentativas que variam desde agradar sua mãe até a opção de seqüestrar o bebê, contando sempre com a ajuda de seus fiéis amigos. E é a partir dessas relações que tanto o universo quanto a visão infantil ganha espaço, criticando de forma satírica o modo sério de vida dos adultos – que testemunhamos em determinadas situações como o preparativo de um jantar importante ou a definição de um castigo entre o diretor e o inspetor da escola.
            A escola, por sinal, é o ambiente onde esses meninos discutem os acontecimentos e planejam suas táticas no intuito de auxiliar Nicolau. Tradicionalista – é uma escola só para meninos – e, por tal razão, cheia de regras, esse cenário é onde acontecem alguns dos melhores momentos de O Pequeno Nicolau. Se para manter a ordem dentro de sala, a professora exige que os alunos sentem em seus lugares, a entrada do diretor, por sua vez, exige que todos se levantem em sinal de respeito e as duas situações em seqüência acabam por se tornar um ponto divertido da narrativa, uma vez que expõe certo condicionamento dessas crianças e da professora às normas que regulam a instituição. Em outro momento, a visita de um membro do governo acaba por deixar todos apreensivos sobre a conduta das crianças, estabelecendo um comportamento deveras formal que entra em conflito com o estilo informal do ministro.
            Com um estilo que muito lembra o mestre Jacques Tati, O Pequeno Nicolau nos transporta a um conjunto de situações que nos pareceria surreal, não fosse o fato de serem vivenciados com a pureza e o idealismo infantis e, se o questionamento inicial do filme surge como uma imposição dolorosa para o protagonista, sua resposta, sem dúvida nos presenteia com uma sensação mais que prazerosa – quase catártica.  
            

quinta-feira, 7 de abril de 2011

EU MATEI MINHA MÃE (J'ai tué ma mère – Canadá, 2009)

Direção: Xavier Dolan

            Candidato canadense ao Oscar do ano passado, Eu matei minha mãe não conseguiu sua indicação à categoria de melhor filme estrangeiro, o que é uma pena, tendo em vista que sua intensidade, somada às belas imagens que apreciamos no desenrolar da narrativa, o transformam em um belo drama de caráter psicológico. Roteirizado, dirigido, produzido e protagonizado pelo jovem Xavier Dolan, o longa nos coloca diante de uma perturbadora relação entre mãe e filho cuja construção nunca apela para o maniqueísmo, preferindo nos apresentar os conflitos que rodeiam esses personagens, os quais, de alguma forma, explicam o comportamento deles e suas opiniões com relação ao microcosmo que os cerca – representado pela casa onde os dois vivem.
            Não é de hoje que questionamos aquilo que temos e com a família nunca foi diferente. A velha máxima de que todas as famílias são perfeitas, menos a minha se aplica muito bem aqui. Para Hubert Minel é impossível não comparar a relação que seu namorado Antoine tem com a mãe com aquela que ele próprio tem com a sua, aumentando ainda mais o abismo que existe entre mãe e filho. O jovem encontra sempre um obstáculo na figura materna; seja na forma como ela mastiga seus alimentos ou nas roupas que veste, Hubert sempre encontra um meio de criticá-la como que querendo culpá-la por alguma coisa. O rapaz está sempre a ponto de explodir – como todo adolescente – e quando isso acontece, ele acaba por despejar toda sua raiva em sua mãe. A grande contradição e, portanto, conflito desse drama está justamente no fato de Hubert saber – em seu íntimo – o quanto ama essa mulher, mesmo sem saber por quê. Desse ponto surge o grande questionamento do filme, o qual, de forma bem universalista, nos aborda sobre o amor familiar e as dificuldades de entender a existência das individualidades que constituem os membros de uma família e que, em alguns momentos, podem colocar parentes em posições divergentes sem apagar o sentimento que sentem um pelo outro.
            É com esse questionamento em mente que a questão da homossexualidade de Hubert emerge na narrativa. O fato de não contar para a mãe sobre sua condição se impõe como um grande conflito para Hubert, uma vez que se torna difícil exigir que ela entenda seu universo. Já para sua mãe, descobrir que seu filho é gay por uma estranha coloca em cheque a relação de confiança entre os dois – pois passa a acreditar que o filho não confia nela, apesar de todos os esforços que realizou ao longo dos anos para ser mãe solteira. Esse é o grande mérito do filme canadense: possibilitar ao espectador todas as visões desse relacionamento sem, jamais, tornar-se caricato ou piegas – apesar de um insert que me incomodou durante a ação. E já que falei em inserts, vários aparecem ao longo da narrativa. Em alguns momentos, eles surgem na forma de simbolismo, trazendo um ar metafórico para determinados acontecimentos – confesso que esses não são meus favoritos. Entretanto, também testemunhamos um depoimento – de valor diegético para o longa – do próprio Hubert, refletindo sobre as sensações e dúvidas que brotam do seu íntimo em relação a sua mãe e esses inserts são muito bem elaborados, pois parecem um diálogo do personagem com o espectador, tornando mais próximas de nós as situações que observamos – afinal, quem nunca teve uma briga familiar que despertasse da nossa mais profunda natureza o desejo de morte a um pai ou a uma mãe?  
            A dramaticidade desse filme é muito intensa e, tal fato, demonstra o quão promissor pode ser o jovem Xavier Dolan que tinha apenas vinte anos quando – repito – roteirizou, dirigiu, produziu e protagonizou Eu matei minha mãe.