domingo, 20 de julho de 2008

Cem anos sem Machado de Assis


Irônico o fato de que o título acima seja, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso. Há cem anos, falecia no Rio de Janeiro o escrito Machado de Assis. Entretanto, de forma poética, não podemos deixar de recordar que sua obra permanece imortal. Imortal... não é a toa que Machado de Assis tenha sido o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897, e tenha, ainda hoje, o título de Presidente Perpétuo. Dessa forma, erraríamos ao afirmar que estes cem anos, os quais se completam em 2008, sejam marcados pela ausência daquele que é considerado por muitos como o maior escritor brasileiro de todos os tempos.

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas

Com essas palavras, Machado de Assis iniciava seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, abrindo as portas do movimento realista na literatura brasileira. Sempre ousado, o escritor rompeu com o tradicionalismo censor da burguesia da época, criando narrativas que fugiam com os padrões estéticos até então aceitos e os quais desembocavam na produção literária romântica. O realismo buscou criticar toda a forma de idealização e pureza amorosa comum ao movimento do romantismo e – como diz em seu nome – tratou de apresentar em suas linhas narrativas a realidade da época. Sendo assim, não é de se admirar que os personagens de Machado de Assis possuam uma relação com o mundo bem diferenciada daqueles que os precederam. Aqui é comum homens e mulheres cujo caráter seja dúbio, sendo capazes de se aproveitar das situações alheias e facilmente induzidos a sentimentos de vingança e cobiça.

As mulheres, extremamente sedutoras e ambiciosas, em quase nada lembram o perfil submisso daquelas que José de Alencar, Bernardo Guimarães e tantos outros apresentaram ao mundo. Os homens, em geral, adúlteros, interesseiros e longe do perfil romântico idealizado de altruísmo e honradez. Os heróis, quase sempre são facilmente manipulados pela situação, uma vez que – em vários momentos – são emocionalmente fracos. Fraqueza que foge do conceito ideal de vencedor – lembramos que neste período já temos a divulgação das teorias darwinistas de seleção natural, induzindo a sobrevivência dos fortes e a conseqüente derrota dos fracos. Machado de Assis ousou em criar personagens psicologicamente complexos que, em geral vivem suas histórias unilateralmente como se tivessem vida própria, sem a intervenção do autor. Em vários momentos de sua narrativa não temos certeza de um fato, uma vez que as afirmações não passam de uma visão pessoal do personagem (quem imaginaria um romance que, em momento algum, nos dá certeza dos fatos como Dom Casmurro?). Interessante notar como, ao mesmo tempo em que Machado de Assis consegue criar estruturas narrativas como a descrita, o escritor ainda é capaz de quebrar de forma genial o decorrer da ação para se dirigir ao leitor como se dirige a um amigo em uma roda de conversa (ele cria uma nova dimensão para o papel de leitor). Além disso, o autor criou um romance inteiramente narrado por um defunto (Memórias Póstumas de Brás Cubas), oferecendo a ele toda a autoridade necessária para realização da narrativa cujo desenrolar é cheio de humor negro e ironias – algo espantoso para a época de sua publicação.

O escritor estará eternizado pela literatura, atraindo a atenção e admiração de estudiosos e leitores famosos como Susan Sontag, Harold Bloom e Woody Allen. Entretanto, vale ressaltar que as atitudes, majoritariamente, errôneas da educação brasileira acabam por criar preconceito para com inúmeros escritores nacionais – dentre eles, Machado de Assis. Nunca iremos criar um país de leitores, enquanto transformarmos nossa literatura em bicho-papão de crianças e adolescentes, obrigando-os a leituras pouco embasadas com o intuito de avaliar conceitos sem gerar consciência crítica da importância literária para o desenvolvimento da cultura nacional – na época da publicação e em épocas posteriores. Influenciar a leitura não é sinônimo de obrigar à leitura. O legado que Machado de Assis nos deixou há cem anos atrás[1] não pode ser deixado para trás. Obrigar alunos a lerem não é dar vida à literatura, é subjugá-la a uma morte lenta por descrença, acabando por nos contentar em decorar os livros didáticos e suas memórias póstumas de uma literatura que já foi viva.


[1] Redundância intencional

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Kitsch e Camp

Conforme prometido no post sobre o conceito de “observador passivo”, disponibilizo uma parte de um trabalho acadêmico realizado por mim e mais três colegas de faculdade para a disciplina de Teoria da Comunicação III no ano de 2006. É um texto onde discorremos sobre o conceito de “kitsch” contrapondo a ele o conceito de “camp”. Obviamente não deixarei de dar os respectivos créditos aos colegas Cizenando Cipriano, Pedro Veríssimo e Mariana Granja que formaram o grupo comigo. Para maiores considerações sobre o tema, indico os textos “Estrutura do Mal Gosto” presente no livro “Apocalípticos e Integrados” de Umberto Eco e “Notas sobre o Camp” de Susan Sontag. (O texto está postado exatamente como foi entregue no trabalho)

Uma obra de arte, por si só, produz certo efeito nas pessoas que a observam. Esse efeito pode ser demonstrado através de diversas reações, que vão do amor ao ódio, da atração ao repúdio, e prova que a obra de arte, de certa forma, interagiu com o espectador. Mas a obra de arte não é a única saída quando se deseja provocar reações nas pessoas. Há certas estratégias e modos de abordar o observador que tentam produzir efeito semelhante ao da obra de arte, sem, contudo, necessitar da complexidade e da exigência de pensamento que ela precisa. O nome dado às obras que aplicam essa, entre outras estratégias, é kitsch. Enquanto uma obra de arte exige trabalho intelectual, essas falsas obras pulam essa etapa, e armam modos de trazer diretamente as conseqüências, o sentimento, de uma forma mais fácil e simples, dando os resultados “nas mãos do espectador”, sem exigir dele um trabalho intelectual complexo. Contudo, o kitsch se apresenta como verdadeira obra de arte, e afirma, inclusive, estar aperfeiçoando e incluindo conhecimentos importantes na vida de quem o observa. Provocar sentimentos, embora seja comum nessas falsas obras, não significa, de forma nenhuma, que seja restrito a elas. Na verdade, a obra de arte provoca efeitos psicológicos no espectador e pode ser dona de múltiplas interpretações, por exigir pensamento e reflexão a toda hora. Ao contrario do kitsch, que por fornecer o resultado pronto para o espectador, sendo ostensivo e auto-evidente, não abre opções para diferentes interpretações da obra.

É possível fazer uma correlação entre kitsch e cultura de massa, e conseqüentemente, entre as obras de arte e as vanguardas. O kitsch é um advento do processo de industrialização e urbanização da sociedade – ou seja, vem no bojo da formação de uma cultura de massa. Com a mudança do cenário de poder e a ascensão da classe burguesa, esta necessitava afirmar-se socialmente – e é na cultura que estão os referenciais gerais de uma sociedade; logo, uma solução encontrada foi fazê-lo através da apreciação e produção de arte, tão cara à aristocracia.

O mercado em construção fez o elo entre a apreciação da arte e seus novos consumidores. Esta mediação, através do kitsch, é uma maneira de fazer a partir de um pedaço ou característica de obra de arte, fora de seu contexto de origem, produzir um outro produto cultural e fazer o espectador supor estar aproveitando uma obra de arte. São despertadas no espectador sensações primárias e, a partir da identificação de gosto, o espectador sente-se satisfeito e demanda cada vez mais daquele tipo de experiência, que para ele está no registro de apreciação artística, enquanto no nível mercadológico é uma produção comercial; daí o kitsch passar a ser denominado de pseudo-arte pelos artistas modernos e depois (o fenômeno do kitsch é do século XIX, apesar do termo ser anterior).

Este caminho de apreciação de “arte”, que sublima as dificuldades que o espectador tende a encontrar na apreciação de uma obra de arte – dado os múltiplos significados nos quais ela pode implicar –, torna-se mera fuga do cotidiano, lazer para depois de um dia de trabalho (o que mostra sua origem na da sociedade industrial): a experiência estética falsa cria a ilusão no espectador de fruição artística.

Enquanto as vanguardas trabalham com as causas, e o modo como algo pode ser provocado e produzido, o kitsch trabalha com os resultados, coletando as reações e as transformando, através de um percurso mais simplista, em reações sem a causa original. Isso porque, como já foi dito, o kitsch vai querer provocar os efeitos da obra sem a complexidade que ela exige, e por isso tende ao exagero e à redundância, muitas vezes.

Entretanto, o kitsch ganhou uma visão na pós-modernidade que nos leva a uma possível reavaliação do seu conceito. Ganha espaço o conceito de camp como uma visão de mundo; determinada sensibilidade presente em alguns indivíduos que permite um olhar irônico sobre o que é considerado kitsch. Não são todos que têm essa sensibilidade e, portanto, muitos vão enxergar essa tentativa de ironia como sendo kitsch. Tal caso ocorre com filmes como Moulin Rouge! que, mesmo com o olhar camp, acaba sendo avaliado como kitsch, pois quem avalia não tem a capacidade de enxergar a intenção de Baz Luhrmann a qual era ser exagerado, confrontando a pecaminosa realidade do famoso cabaré francês do início do século XX e aproximá-lo da nossa realidade atual, lançando mão de músicas de Madonna, Nirvana, Elton John, entre outros – um verdadeiro choque de culturas exageradamente kitsch (enquanto modo de fazer) para quem vê seriamente e perfeitamente camp para quem sente.

A Questão Social e Tropa de Elite


Nos últimos meses, as manchetes jornalísticas estão nos apresentando a dura realidade em que vivemos. Não é novidade para ninguém a escalada da violência nos grandes centros urbanos, ainda mais quando se trata de minha cidade natal, o Rio de Janeiro. Confesso, com profunda revolta, o quanto é triste ver uma cidade com tamanhos potenciais naturais, culturais e, por conseqüência, turísticos estar entregue aos jogos políticos (leia-se burocráticos, corruptos e, principalmente, impunes) cujos resultados se refletem em violência e sofrimento sem que uma opção devidamente benéfica seja discutida. Os seguidos desastres nas ações daqueles que, supostamente, deveriam nos transmitir a sensação de segurança (e as repercussões desses atos na própria corporação e na sociedade) me obrigam a essa reflexão... mais que uma reflexão carioca (com o chiado no s), uma reflexão de um cidadão brasileiro sobre dois bens da natureza que sofrem com essa situação – a bela cidade em que moro e as vidas de vários inocentes que foram perdidas e que, infelizmente, ainda irão se perder. Uma criança de três anos foi morta por policiais (na verdade foi executada) em uma ação absurdamente errônea, próxima a uma delegacia e - porque não lembrar? - a poucos quarteirões da minha residência. Poucos dias depois, um homem é morto a tiros durante uma perseguição policial. Os policiais imaginavam ser, o homem, um dos bandidos que roubara um veículo que pertencia a ele (soma-se o fato em si às imagens apresentadas na televisão com os procedimentos dos policiais ao retirarem os dois atingidos – bandido e vítima – de dentro do carro). Falemos mais, soldados do exército que entregaram jovens a traficantes do morro inimigo, acarretando na tortura e na execução desses jovens cujo crime era desacato (qualquer pessoa com o mínimo preparo em psicologia sabe como os jovens têm tendências a desacatar qualquer autoridade, mas isso não vem ao caso). Concluo as exemplificações com a, ainda não solucionada, questão da engenheira que sumiu e cuja solução pode apontar para mais um desastre policial.

Uma conclusão básica pode ser tirada dos exemplos supracitados: a polícia do Rio de Janeiro está despreparada. Recorro a um argumento apresentado por Rodrigo Pimentel (o homem por trás do livro Elite da Tropa que deu origem ao filme quase homônimo de que falarei mais adiante) no documentário Ônibus 174 (dirigido por José Padilha, o mesmo que dirigiu o, já citado, Tropa de elite). A polícia do Rio de Janeiro absorve para o seu contingente, representantes da População Economicamente Ativa que não foram alocadas no mercado de trabalho e que, portanto, precisam de emprego para garantir suas necessidades básicas. Em geral, portanto, a polícia do Rio de Janeiro adquire da sociedade, profissionais que pouco entendem do seu trabalho – somando a isso a formação precária que terão, entendemos um pouco das pessoas que são responsáveis pela segurança pública carioca e que recebem uma arma para garanti-la. Além do despreparo profissional, podemos refletir sobre o despreparo físico, uma vez que – várias vezes – me deparei com matérias e fotos jornalísticas onde policiais desfilavam sua falta de forma física que, no meu entender, são discrepantes para uma profissão que envolve – engraçado comentar – forma física (!!!). Outra questão é o preparo psicológico para um trabalho que vive sob fortes pressões da sociedade, da família, da própria corporação e, é claro, dos bandidos (ressaltar o fato de ser uma profissão onde se corre risco de morte). Os salários não são nem um pouco dignos para viver em tais condições, o que facilmente leva esses profissionais a atos ilícitos tais como corrupção, negligência, latrocínio e, homicídio (vai ficando cada vez mais claro o por quê de ser mais conveniente para um policial abrir fogo do que qualquer alternativa). Outro indício alarmante foi apresentado pelo próprio Pimentel no programa Espaço Público, o fato de os policiais serem condecorados não pela baixa nos índices de criminalidade, mas pela quantidade de “bandidos” mortos em sua região. É alarmante!!! Mais alarmante é a forma como a alta cúpula de segurança pública e a sociedade encaram determinados atos policiais.

No caso João Roberto (a criança de três anos do exemplo) a polícia inventou um tiroteio. No caso dos jovens entregues, os soldados alegaram que só queriam “um corretivo” e que não sabiam que os traficantes inimigos iriam matá-los. Já no caso do roubo de carro que resultou na morte de um inocente, a secretaria estadual de segurança declarou que o procedimento dos policiais foi bem realizado. Buscam-se justificativas para o injustificável – a explicação? É só reler o parágrafo anterior. Quanto à população, é muito grave assistir à opinião pública concordar com certas ações da polícia que, como venho dissertando, pode se virar contra a população. Ao aceitarmos o “dedo frouxo” no gatilho, o combate da violência com o extermínio, estamos correndo o risco de gerar o extermínio de inocentes: os tiros que acertam um bandido podem acertas vários inocentes. Esse posicionamento da população me pareceu preocupante a partir do sucesso do filme Tropa de Elite (não do sucesso em si, mas como o sucesso se apresentou).

Considero o filme Tropa de Elite como um excelente exemplar do conceito de observador passivo. Uma narrativa que tenta apresentar uma situação sem interferir nela (o filme é quase um documentário), buscando gerar perguntas sem oferecer respostas. Entretanto, o público (costumeiramente observador ativo) desejoso de uma solução para os inúmeros problemas sociais em que está imerso (considero que a catarse pública em torno do filme é proveniente dessa condição da população), acaba vislumbrando, no desenrolar da trama, com policiais que não se deixam levar pela corrupção e que combatem o crime com eficácia (será?). O Capitão Nascimento se torna a resposta para nossos problemas, quando, na verdade, deveria ser a dúvida sobre como estamos lidando com nossos problemas. Volto a citar Rodrigo Pimentel (que, para os desavisados não custa nada lembrar, é ex-capitão do BOPE) que disse em entrevista que considera o sucesso de Tropa de Elite como um possível responsável pela opinião da sociedade sobre ações policiais nas favelas e no combate ao crime, não obstante essa não ser a intenção dele, Padilha e Mantovani (roteiristas do filme). Era comum, durante a exibição do filme, as pessoas rirem enquanto personagens eram torturados e executados.

Como última esperança (para não me causar revolta maior), espero que os exemplos os quais citei no início do texto e que fogem da esfera marginalizada da sociedade (leia-se favelas e subúrbio), invadindo o tão prezado bem-estar da “classe média-zona sul” não tenham ocorrido em vão e sirvam de grito para que mudemos posturas sociais a fim de que possamos intervir (o que é um direito nosso) nas políticas públicas de segurança, garantindo um futuro melhor para crianças como João Roberto cuja morte, insisto, não pode – em hipótese alguma - ser em vão.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O Conceito de "Observador Passivo"

Em minha resenha sobre o filme “Ninguém pode Saber” utilizei uma expressão para definir o papel do espectador ao assistir a essa película japonesa: observador passivo. Acrescentaria ainda ao filme “Elefante” a definição de observador passivo pelos motivos que irei dissertar a seguir, apresentando as justificativas pelas quais baseio meu entendimento sobre a expressão citada.

Nos dois filmes em questão, a câmera que acompanha o desenrolar das suas respectivas narrativas são meras observadoras. Na verdade, elas em momento algum interferem na ação dramática dos personagens cujos desenvolvimentos não acontecem em função do objeto de filmagem e sim o contrário. Essa função de observador acaba por se estender ao espectador, o qual, geralmente, sente profundo incômodo e assistir a esse tipo de filme. Isso acontece porque aquele que assiste ao filme é tomado por uma imensa vontade de atuar na perspectiva de alterar as situações apresentadas pela narrativa e esperam que a câmera – e a própria ação do drama – realize essas transformações. Nesse sentido aquilo que observaríamos como a condição inversa ao observador passivo (cuja conceituação mais apropriada no presente momento será a de observador ativo) acaba por criar uma aceitação de tudo aquilo que é apresentado pela narrativa, gerando uma condição, ironicamente, de passividade no espectador. Isso mesmo! Ocorre uma inversão nos conceitos, o que tentarei explicar.

A câmera quando assume o papel de observador ativo acaba por interferir no desenrolar da narrativa a qual ocorre em função daquilo que a câmera deseja captar (e por conseqüência, aquilo que o espectador deseja ver). As ações correm o risco de se tornarem falsas e as respostas acabam sendo dadas de forma simplista, através de sensações catárticas – em sua grande maioria piegas. Dessa forma, o espectador se resigna, aceita o que lhe é apresentado, tal qual foi apresentado, caindo numa passividade preocupante. Sai do cinema apenas com a sensação de ter sido agraciado com bom entretenimento que esperava antes de entrar na sala de projeção. Isso não quer dizer que filmes que apliquem esse conceito não sejam obras cinematográficas dignas de respeito. Ultimamente temos sido agraciados com ótimas películas que usam o papel de observador ativo – dentro daquilo que proponho a refletir. Homem-Aranha, Batman Begins, Kill Bill, Cidade de Deus são belos exemplos de uma utilização eficaz desse conceito. Não podemos perder de vista que o cinema é arte, mas também é entretenimento e conseguir unir essas duas perspectivas em uma obra é um feito merecedor de toda forma de consideração. Volto à discussão.

No conceito de observador passivo, a câmera não interfere bem como o espectador – eles apenas observam, sendo geralmente tomados por determinada forma de angústia difícil de explicar. A vontade é de interferir, algo que é impossível. Ao seguir essa forma de proposta estética, o diretor de cinema deve tomar muito cuidado, pois um mero momento de desatenção é capaz de derrubar todo o trabalho cinematográfico, tornando a obra em exemplar kitsch (um dia apresento uma divagação sobre kitsch que fiz com outros colegas de faculdade como trabalho de curso). Ao fim da projeção, o espectador percebe a incumbência de refletir sobre as situações dramáticas, sendo obrigado a assumir um papel ativo de divagação. Essa talvez seja a principal intenção nos filmes Elefante e Ninguém pode Saber – como disse na resenha de Elefante: esses filmes querem gerar perguntas e não oferecer respostas.

Espero ter sido claro em minhas divagações. Deixo claro que nenhuma das minhas afirmações tem a intenção de se tornar absoluta, sendo mera reflexão sobre a utilização do termo em uma resenha.

Elefante (Elephant - EUA, 2003)


Direção: Gus Van Sant

Esse, talvez, seja o filme mais controverso que já tive a experiência de assistir. Ou você ama, ou você odeia. Entretanto, a maioria das críticas negativas que li sobre esta produção usa como argumento o fato de o filme ser chato. Obviamente todos têm o direito de pensar o que quiser sobre o filme e, de fato, Elefante não é um filme que trabalhe com os atrativos dos grandes blockbusters norte-americanos – não é um filme com ação (repare no tom diferenciado usado, uma vez que devemos separar os significados que o termo “ação” adquire no cinema para o senso comum e para os estudiosos da área – para o senso comum, a ação está ligada às explosões e outras situação catárticas que levem o espectador a um orgasmo visual. Já para os estudiosos a ação está ligada ao drama e à necessidade dramática do personagem, todos os meios e aprendizados pelos quais o personagem passa ao longo da narrativa é chamada ação dramática.). Na verdade, Elefante está longe de ser um filme hollywoodiano, apesar de ter como diretor uma figura conhecida de Hollywood – Gus Van Sant (indicado ao Oscar em 97 pelo filme Gênio Indomável). Entretanto, o argumento de que um filme é chato não pode ser usado como base para afirmar que um filme é ruim (filme chato e filme ruim são coisas completamente diferentes). A verdade é que Van Sant vem realizando, nos últimos anos, alguns projetos experimentais, dentre eles: Elefante.

A história é bem conhecida de todos. Acompanhamos um dia, supostamente, comum em uma escola dos Estados Unidos. Observamos o comportamento dos alunos em seu cotidiano escolar e as relações que existem entre eles – tudo normal, não fosse o fato de que dois alunos entram armados no colégio e acabam por se divertirem, atirando nos alunos e professores e terminando por tirar as próprias vidas. O ponto alto deste filme – e sem dúvida alguma seu grande diferencial – é o fato de Gus Van Sant ousar; ousadia é algo que eu admiro muito em trabalhos cinematográficos. Apesar de muitos considerarem Van Sant um grande charlatão, devo tirar o chapéu pela sua coragem – a base de sua ousadia é pouco clara a princípio, portanto ponho-me a refletir.

Elefante é um filme sobre a mente humana e suas reações nem sempre usuais aos estímulos da sociedade. Acompanhamos, ao longo da película, a história de alguns adolescentes – exatamente aqueles que terão seu destino traçado no fatídico dia comum. Cada um realiza suas ações cotidianas – seja tirar fotos ou vomitar no banheiro – e vamos acompanhando cada uma dessas ações sem interferir em nada (a câmera nunca ou quase nunca se coloca entre os personagens, creio, inclusive, que não há plano e contra-plano em Elefante e, se houver, é muito pouco). Assim como a mente humana, não existe lógica na cronologia dos ocorridos. Somos jogados do presente para o passado em vários momentos, afinal estamos acompanhando vários adolescentes que nem sempre estão no mesmo local ao mesmo tempo, mas que realizam suas ações no mesmo momento – a edição do filme inclusive é muito bacana, uma vez que, ao mesmo tempo em que nos leva e trás no tempo em questão de momentos, é capaz de nos fazer acompanhar vagarosamente os passos de cada aluno. Essas confusões cronológicas nos levam exatamente às mentes mais confusas do filme (será?): Erick e Alex. Os dois rapazes são constantemente humilhados pelos colegas durante as aulas e, possivelmente, só possuem um ao outro – já que nos parece claro que nem em casa eles têm atenção necessária. A questão é: quem nunca foi zoado pelos colegas da escola? Mas a mente humana é absurdamente ilógica. O que para uns pode ser motivo de risadas, para esses rapazes é motivo o suficiente para planejar uma carnificina. Mais uma vez, a câmera não interfere e somos apenas observadores – Alex toca piano, Erick joga vídeo game (por sinal um jogo de tiros o qual, ouvi dizer, foi criado especialmente para o filme, já que havia o intuito de não usar um jogo já existente) e o tempo passa... Estamos diante de dois rapazes que passaram pela vida sem aproveitar – sem amigos, sem carinho, vivendo em um ambiente socialmente frio e, ainda por cima, vítimas do preconceito e das piadas dos colegas de sala. Não é de se admirar que sejam mentes perturbadas e facilmente manipuladas por valores vis e insanos. Mas eles não são os únicos.

Ao longo da narrativa acompanhamos o dia de vários adolescentes que sofrem do mesmo vazio – a diferença está nos meios pelos quais eles conseguem dar sentido as suas vidas (fotografando, trabalhando na biblioteca, sendo do time de futebol da escola). John, o primeiro personagem a que somos apresentados é um jovem que sofre com problemas em casa e na escola e, no entanto, ele é alvo da única ação realmente sincera: o choro seguido por um beijo no rosto (simplesmente um beijo no rosto) dado por uma menina que sente realmente a necessidade de ajudar alguém (ela faz parte do grupo da escola que discute os direitos dos homossexuais). John e a menina também parecem ser os únicos personagens que possuem maior vínculo com aqueles que estão ao seu redor – acompanhamos isso ao longo do filme nas conversas da jovem com os outros integrantes do grupo homossexual e nos encontros de John com outros alunos da escola e a forma como eles se relacionam.

Outro destaque é o trio de meninas bulímicas, que representam mais uma das pressões de nossa sociedade – a importância de se encaixar no padrão de beleza vigente. Como vemos são inúmeras pressões e as formas como lidamos com elas podem ser em diversos aspectos ilógicas. Ressalto, também, um momento da narrativa que envolve um personagem negro - Van Sant ousou em criar uma mínima sensação de catarse no público e castrou essa sensação. Elefante é um filme reflexivo e não um filme feito com o intuito de levar o espectador ao orgasmo – ele quer gerar perguntas e não oferecer respostas. Refletir sobre uma sociedade que, cada vez mais, perde os valores de união e se fecham em seus mundos e neuroses e só aparecem aos olhos alheios quando explodem em atos de desespero. Irônico que quando isso acontece o pensamento usual é: em que mundo nós vivemos?

E já que mencionei o nome de Van Sant, passo a observar também as escolhas estéticas feitas para o filme. Já mencionei o fato de a câmera buscar não interferir na ação dos personagens e dela acompanhar e vários momentos o movimento dos personagens – planos onde não vemos o rosto de quem anda, referência aos jogos de computador onde só vemos as mãos e as armas do personagem. Temos também a edição de som muito curiosa, onde, em alguns casos, um som distante parece estar próximo. Admiro muito esse trabalho pela ousadia e agradeço aos jurados de Cannes por terem agraciado Elefante com a Palma de Ouro em 2003 – creio que nunca teria a oportunidade de assistir a essa aula de linguagem cinematográfica, caso esse filme não fosse premiado na França um dia.

domingo, 13 de julho de 2008

Ninguém pode Saber (Dare mo shiranai - Japão, 2004)


Direção: Kore-eda Hirokazu

Eficaz transposição de um fato real para o cinema, capaz de realizar de forma marcante um relato sobre uma triste condição humana.

Assim resumo este filme japonês o qual tive muita dificuldade em assistir até o fim. Interessante ressaltar que só consegui entender os motivos para tal após, finalmente, chegar ao final da narrativa (em seus marcantes 141 minutos de duração). As primeiras vezes em que tentei assistir a Ninguém pode Saber fui surpreendido pela minha repentina ação de parar a película no meio, adiando por três vezes sua conclusão. Quando finalmente cheguei ao fim da projeção (obs: todas as vezes que reiniciei a projeção, a fiz desde o início da narrativa – portanto assisti ao filme do começo ao fim e nunca iniciei o filme do meio) pude perceber o real motivo de meus abandonos anteriores: a carga psicológica de sua narrativa é extremamente pesada.

A premissa parece simples e típica de filmes de comédia infantil norte-americana. Uma mulher e seus filhos mudam-se para um novo apartamento, sendo que os três filhos mais novos (duas meninas e um menino) são obrigados a se esconderem sob o risco de serem expulsos da nova residência. O único que pode ser visto é Akira, o mais velho, cuja responsabilidade é cuidar dos irmãos sempre que a mãe encontrar-se ausente. A situação muda quando a mãe das crianças sai de casa e não retorna, deixando os filhos sozinhos com algum dinheiro. Ocasião perfeita para uma festa, uma vez que não haveria adulto presente para controlar os instintos infanto-juvenis, certo? Errado. A ação dramática deste longa nos arremessa para o lado oposto da moeda, nos obrigando a mergulhar num ambiente caótico o qual vai se tornando cada vez mais melancólico a medida que os dias passam (algo que em muitos momentos não fica claro graças as bem colocadas elipses no decorrer da história).

Quatro crianças obrigadas a sobreviverem sem o acolhimento materno e buscando alternativas para o dia-a-dia, uma vez que não podem sair do apartamento em que vivem, não podem ir para a escola e não possuem amigos (na verdade, tudo o que possuem são uns aos outros e uma carga excessiva de responsabilidade atípica a idade que têm). E a dura realidade em que se encontram os obrigam a se aproximarem numa unidade familiar incomum. Entretanto, as dificuldades que possuem em aceitar a condição acabam por afastá-los e condená-los a um silêncio cruel (em muitos momentos o filme nos oferece o silêncio como voz). Como o único que pode sair de casa é Akira, este acaba descobrindo que ficar fora de casa é a melhor alternativa para fugir da pressão que sofre (uma vez que a responsabilidade sobre os irmãos é dele). É nas ruas que ele descobre a quantidade de vida que ele e os irmãos não conhecem e também é um lugar onde o jovem pode se descobrir melhor – olhar para si. Essa é a razão que explica o fato dele durante um bom tempo do dia manter-se fora e tentando levar um pouco da rua para dentro de casa (e, por conseqüência, ignorando seus irmãos). Tal fato é visível quando ele leva alguns amigos (leia-se estranhos conhecidos na rua) para jogar videogame enquanto seus irmãos são observadores passivos.

Aliás, observador passivo é um bom termo para nomear o espectador deste filme. Somos incapazes de não esboçar reação pela situação que vemos, mas somos impotentes em realizar alguma ação capaz de modificá-la. A câmera de Hirokazu em boa parte do filme é fixa, limitando-se, em poucos movimentos (bem sutis), a nos expor a uma condição sem realizar qualquer tipo de manipulação nos desdobramentos dos personagens cujos intérpretes se saem muito bem. Menção especial para Yûya Yagira que dá vida e alma (algo fundamental para o sucesso de um personagem) a Akira, um personagem extremamente complexo apesar de seus doze anos. O rapaz acabou sendo premiado em Cannes pelo seu papel, desbancando nomes famosos como Tom Hanks e Gael Garcia Bernal (como nos lembra o DVD do filme). Akira cresce como ser humano ao se deparar com situações tão desumanas como o caos representado por sua moradia sem luz, água, gás. Seu amadurecimento, inclusive, fica bem evidente com a mudança de voz que o personagem sofre – típica da puberdade. E as pessoas que surgem em sua vida durante seu calvário são pontuais para todas as críticas sociais que podemos tirar da projeção. Os atendentes da loja cujas ações lembram muito o mascaramento da sociedade em situações semelhantes (afinal estamos todos cercados de crianças sem pais que sobrevivem dia a dia contando apenas consigo); nós sabemos do problema, sentimos pena, tentamos ajudar, mas somos incapazes de agir de forma a mudar as conjunturas desumanas que nos circundam. Já Saki nos mostra como o desespero não é privilégio somente dos necessitados. A menina é rica e acaba encontrando o afeto que tanto desejava junto aos irmãos com quem passa a viver a partir de um ponto da narrativa.

Evito falar mais, embora queira, sob o risco de revelar mais do que posso. Ninguém pode saber é uma narrativa complexa – é preciso estar preparado para ela, caso contrário, o espectador pode ser obrigado a parar a projeção sem entender o porquê, expulso por uma carga psicológica pesada, mas extremamente verossímil e profundamente tocante (e por incrível que pareça, em momento algum piegas ou clichê).

...Sobre a concepção

Já faz algum tempo que pretendo criar um espaço dedicado às inúmeras reflexões do dia-a-dia. A idéia é tratar de assuntos variados sem a mínima preocupação lógica em seguir alguma temática ou cronologia pré-determinada. O funcionamento deste blog seguirá as nuances nem sempre coerentes do funcionamento da mente humana.
Os posts irão variar entre contos, poesias, fotografias, vídeos, podcasts, reflexões, artigos, projetos entre outros - sejam de minha autoria ou da autoria de figuras consagradas (sejam famosos ou, simplesmente, inteligentes - e aqui deixo registrada a minha preferência pelos inteligentes) para o público ou para mim.
Deixemos a mente fluir sem nos preocupar na ordem em que as coisas aparecem, um minuto pode ser uma vida inteira ou vice-versa. O início nem sempre vem antes do fim - aliás a maioria das vezes não vem e o final jamais será absoluto, uma vez que o ciclo nunca se fecha e as experiências sempre serão renovadoras e as novas reflexões sempre completam e desmentem as anteriores. Saudemos a mente humana e suas particularidades - aquelas que nos tornam nós mesmos.