quinta-feira, 15 de março de 2018

DAS ORIGENS DO CINEMA AO CINEMA DAS ORIGENS

Auguste e Louis Lumière
Afirmar que o cinema surgiu com o cinematógrafo dos irmãos Lumière é algo extremamente questionável. Basta uma pequena pesquisa para percebermos que o registro de movimento, presente na própria etimologia da palavra que deu nome ao dispositivo (a palavra cinematógrafo remonta da junção dos termos kinéma – movimento e graphos – registro, significando registro do movimento; o termo cinema nada mais é que a abreviação da palavra cinematógrafo), muito além de ser um desejo antigo, já era realidade quando, em 28 de dezembro de 1895, Auguste e Louis Lumière (foto acima) fizeram a primeira exibição de imagens em movimento. Em países como EUA e Alemanha, outros dispositivos eram utilizados na promoção de projeções públicas de cinema, dentre as quais algumas já pagas. Portanto, o marco inicial – a data de nascimento da Sétima Arte – é meramente simbólico e tentar entender as razões pelas quais o Grand-Café de Paris é considerado como o início do cinema seria um tema para várias pesquisas. O que vale ressaltar, no entanto, é que o cinematógrafo é mais uma das inúmeras tentativas de registro do movimento, os quais, ao longo da história, intervieram no imaginário do homem. O objetivo deste pequeno artigo é explorar um pouco dessa história no intuito de mostrar que, assim como afirma Arlindo Machado (in COSTA, 2005, p.13), “o cinema (...) é um meio ainda a ser descoberto”.

Animal locomotion - 16 frames of racehorse "Annie G." galloping

Entender o cinema em sua origem é desembocar no desenvolvimento de várias técnicas e pesquisas de cunho científico, todas possibilitando a emergência daquilo que hoje consideramos cinema. A câmara escura, por exemplo, forneceu experiências inovadoras no sentido da produção de perspectiva e, também, nas pesquisas de movimento cujo principal nome é o de Eadweard J. Muybridge. Sua curiosa tentativa de provar que um cavalo, a galope, permanecia com as quatro patas no ar ao mesmo tempo motivou a elaboração de um dispositivo que, ao ser acionado, disparava – tal qual uma metralhadora – uma sequência quase instantânea de fotos que registravam o desenrolar dos movimentos do animal. As pesquisas envolvendo a persistência retiniana, também, foram fundamentais, pois provaram que a retina é incapaz de registrar determinada imagem caso ela seja apresentada a certa velocidade. O princípio da ilusão cinematográfica está baseado justamente nessas pesquisas: fotografias em sequência exibidas a uma certa velocidade, dando a impressão de movimento, pois nossa retina é incapaz de registrar o intervalo que existe entre os fotogramas.
A essa altura da história, entretanto, muitas outras formas de intervenção no imaginário, através do uso da simulação do movimento, eram fartamente utilizadas em feiras e outras exibições. Uma das mais populares eram as lanternas mágicas, cujo conceito muito lembra o projetor de cinema. As fantasmagorias eram um dos usos mais comuns do princípio da lanterna mágica, abrindo espaço para um conceito de espetáculo realizado a partir da projeção de imagens. Outro dispositivo muito difundido na época eram os panoramas: pinturas desenvolvidas em 360°, dispostas em forma circular que ofereciam ao espectador a sensação de real. Nessas pinturas eram representadas cenas de batalhas, pontos turísticos, vistas de elementos naturais como montanhas e mares de tal forma que aquele que observava as imagens sentia-se parte da cena retratada. Além disso, já nos EUA, fazia sucesso um aparelho denominado cinetoscópio. Desenvolvido no laboratório de Thomas Edison, esse dispositivo possibilitava a projeção individual de imagens animadas. Interessante notar que todos esses dispositivos eram explorados comercialmente, algo que marcará o cinema ao longo de sua história. Entretanto, podemos afirmar que o imaginário é um dos, senão o maior, atrativo dessas novas formas de tecnologia – algo que remete a períodos muito mais antigos que o século XIX.
Cinetoscópio
Hoje se sabe que, desde a pré-história, já se buscava registrar, em imagens, o movimento. Pinturas rupestres exploravam o relevo, as luzes e as sombras para simularem o efeito de animação. O próprio mito concebido por Platão antecipa – em forma de alegoria – o princípio das salas cinematográficas, através do conceito de projeção, nas paredes da caverna que dá título ao mito, de sombras que simulam o real. O cinema, tal qual conhecemos hoje em dia, desenvolveu-se ao longo de anos – séculos – e os irmãos Lumière, percebe-se, foram apenas um passo importante desse desenvolvimento, o qual merece muito mais atenção que a que oferecemos, uma vez que os estudos envolvendo esse período ainda são escassos.
O advento do cinematógrafo abriu espaço para um período da historiografia do cinema conhecido por terminologias como: cinema das origens, cinema de atração, cinema de mostração, pré-cinema, dentre outros. Esse período vem se revelando como um momento rico para o estudo do audiovisual e da linguagem cinematográfica anterior à Narração Clássica e, também, merece atenção especial dos amantes da Sétima Arte.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema. Espetáculo, narrativa, domesticação. Azougue Editorial: Rio de Janeiro, 2005.

domingo, 4 de março de 2018

OSCAR 2018 - ESCOLHAS PESSOAIS


MELHOR CURTA-METRAGEM DE FICÇÃO – Esta é a única categoria da qual não assisti a nenhum indicado. Assim sendo, parafrasearei Glória Pires e direi: “prefiro não comentar”.
MELHOR CURTA-METRAGEM DE ANIMAÇÃO – Tendo visto quatro dos cinco indicados na categoria (eles estão disponíveis no YouTube), considero que o filme mais tocante, dentre os assistidos, é “Negative space”. Utilizando a técnica de stop motion, o filme trata de afeto, perda e memória com um olhar muito criativo e tocante. Devo destacar também o belo trabalho de “Garden party”, que beira a perfeição ao retratar uma festa de sapos, rãs e pererecas em uma mansão abandonada. “Lou”, produção da Pixar, apesar de fofo e da mensagem que deixa, me parece mais do mesmo e com o favoritismo de “Viva” na categoria de longa de animação, enxergo a necessidade de abrir os horizontes para outras narrativas. Já “Dear Basketball” parece apostar no sentimentalismo proveniente de uma das figuras mais bem-sucedidas do basquete em um relato pessoal que toca, mas em nada é original. Não consigo apontar um favorito – até por não ter visto todos os indicados. 


MELHOR CURTA-METRAGEM DOCUMENTAL – Assisti a três dos cinco indicados e fui positivamente surpreendido pelas propostas de todos. “Heroína(s)” (disponível na Netflix) acompanha três mulheres envolvidas no combate ao excessivo número de mortes por overdose de heroína na cidade de Huntington (conhecida como a capital americana da overdose). Através de um tratamento humanizado, uma assistente social, uma bombeira e uma juíza analisam o triste cenário do vício e as possíveis estratégias para superá-lo. Destaque para a fala de uma das retratadas do documentário que compara o poder da droga no seu organismo ao poder proveniente de um beijo em Jesus. “Edith + Eddie” (disponível no YouTube com legendas em português) nos apresenta ao mais velho casal inter-racial dos Estados Unidos. Ele, com noventa e cinco anos, e ela, com noventa e seis, se conheceram graças a uma aposta na lotérica e imediatamente começaram a dividir suas vidas. O cotidiano do casal – ir à igreja e receber amigos em casa – é afetado por uma decisão judicial que dá poderes a uma estranha para decidir em nome de Edith e pela polêmica opção de levá-la para longe do homem que ama, escancarando uma discussão que, tomado o ponto de vista da câmera, vai desde como lidar com os idosos até o preconceito racial. Meu favorito, no entanto, é Heaven is a traffic jam on the 405”(disponível no YouTube). O corajoso relato de Mindy Alper, presa a episódios de abusos, depressão e ansiedade, sobre sua família e sua arte remetem muito ao trabalho realizado no Brasil por Nise da Silveira e ganha profunda expressividade por nos possibilitar acompanhar o seu dia a dia e parte do seu processo de criação (eu realmente espero que ele saia vencedor no domingo – apesar de não ter assistido a dois dos concorrentes). Não me surpreenderei caso “Edith + Eddie” saia vencedor.


MELHORES EFEITOS VISUAIS – Desde sempre, considero que os efeitos visuais, assim como todo o aparato técnico de um filme, devem existir em função da narrativa, funcionando como elemento impulsionador e não como a base ou a verdade sob a qual a narrativa se esconde. Observar o desenvolvimento desta categoria é uma deliciosa viagem pela imaginação humana e é impressionante o que os profissionais desta área foram capazes de fazer ao longo da história do cinema. Não esqueçamos que, por princípio, o cinema é um efeito visual – a ilusão das imagens em movimento. Desde agosto do ano passado, defendo que o prêmio da categoria tem de ir para “Planeta dos Macacos: a guerra”. O uso dos efeitos é de uma perfeição ímpar e impulsiona uma narrativa que necessita de primeiros planos para transmitir a tensão do drama vivido por Cesar e companhia. A conquista do prêmio do sindicato indica que “Planeta dos macacos: a guerra” repetirá o feito no Oscar e, justiça seja feita, merece muito. 


Observação Importante
As diferenças entre as categorias de Mixagem de Som e de Edição de Som parecem tão sutis que, em geral, o resultado das duas tendem a ser o mesmo ao abrir dos envelopes (ou, até mesmo antes, quando do anúncio dos indicados – basta observar que os cinco nomeados da categoria este ano são os mesmos). É importante, no entanto, saber diferenciá-las para poder, ao menos tentar, ser justo na hora de afirmar que uma produção é merecedora desses prêmios. Quando assisti a “Blade Runner: 2049”, fui taxativo em afirmar que ele sairia vencedor das categorias sonoras do Oscar. Mantive essa certeza até assistir a “Dunkirk”, quando passei a me dividir sobre as categorias. Felizmente (não para as produções, porque, afinal, eu não sou membro da Academia), pude me basear nas sutilezas de cada categoria para decidir em favor dos dois filmes. Numa análise bem simplista, deve-se atentar para o fato de que a Edição de Som é responsável por tudo que ouvimos durante a narrativa fílmica enquanto a Mixagem de Som responde pela interação dos elementos sonoros da obra. Foi baseado nessas distinções que busquei decidir meus favoritos pessoais a essas categorias.

MELHOR EDIÇÃO DE SOMDentro da noção de "tudo que ouvimos no filme", fiquei positivamente surpreendido pelo trabalho apresentado em “Em ritmo de fuga”, mas daria meu voto a “Blade Runner: 2049”. O filme de Villeneuve exige uma ambientação sonora baseada em sons de naturezas distintas a fim de nos transportar para o momento do filme (no caso: o ano 2049). O sindicato de editores de som premiou "Blade Runner: 2049" na categoria efeitos sonoros, enquanto "Dunkirk" saiu vencedor na categoria edição de trilha sonora. 



MELHOR MIXAGEM DE SOM – A boa interação sonora em “Dunkirk” é fundamental para transmitir a tensão existente na narrativa, algo muito bem explorado em uma obra que opta por esconder o antagonista (nenhum alemão aparece filme), cabendo, portanto, a outros elementos o papel de traduzir a angústia que se impõe aos personagens. Repare na cena abaixo como a trilha sonora some para dar lugar a um silêncio gradativamente ocupado pelo som ameaçador dos aviões inimigos e como o som das bombas explodindo é abafado pelos ouvidos tapados do jovem soldado inglês. (O filme de Nolan venceu o prêmio do sindicato, consolidando seu favoritismo no Oscar)

MELHOR CANÇÃO ORIGINAL – Esta categoria, a princípio, premia aquela canção que melhor interage com a narrativa do filme que a inspirou. Assim sendo, canções como “Remember me” (“Viva: a vida é uma festa”) e This is me” (“O rei do show”) levam vantagem por terem papel diegético na ação dramática. A história da categoria, no entanto, demonstra que essa noção ampliou-se e o prêmio de melhor canção original comumente é entregue a uma tradução musical de uma narrativa fílmica. Baseado nisso, daria meu voto a “Mystery of love” de “Me chame pelo seu nome”. Fico feliz em saber que a produção da cerimônia decidiu por convidar todos os intérpretes a apresentarem as canções durante a cerimônia (em várias edições anteriores, intérpretes e canções não foram incluídos no programa, algo, no mínimo, injusto com os envolvidos). Importante ressaltar a força de Mary J. Blidge que, acumulando as indicações de melhor atriz coadjuvante e de melhor canção original, pode sair com a estatueta nesta categoria por "Mighty River" ("Mudbound: lágrimas sobre o Mississipi"), um filme que merecia mais visibilidade na premiação. 


MELHOR TRILHA SONORA ORIGINAL – Lá se vão mais de vinte anos desde que Hans Zimmer ganhou o Oscar pela trilha original de “Rei Leão”. Desde então, Zimmer passou por momentos pouco inspirados até que iniciou uma nova parceria – com o diretor Christopher Nolan nos filmes da trilogia “Cavaleiro das Trevas”. A partir daí, o alemão vem tendo momentos muito inspirados como “Interestelar” e este “Dunkirk”. Mais que isso, a trilha sonora de Hans Zimmer tem papel fundamental para traduzir a tensão do momento, uma vez que trata-se de uma obra de poucos diálogos, sem um protagonista claro e com um antagonista invisível. O ano de 2017 deve ser lembrado, ademais, como um excelente momento do compositor, pois, além de “Dunkirk”, Zimmer foi responsável pela trilha de “Blade Runner: 2049” e acreditei, inclusive, na possibilidade dele concorrer contra ele mesmo nesta categoria. Destaco um dos seus concorrentes, a bela trilha sonora de “Trama fantasma”, que demonstra o quanto Johnny Greenwood se consolidou como um grande compositor de trilhas.

 
MELHOR MAQUIAGEM E CABELO – A transformação de Gary Oldman em Winston Churchill passa pela maquiagem, mas não só. Não fosse a performance do ator por baixo da caracterização, o filme seria um desastre (uma vez que o roteiro não ajuda muito) com uma bela maquiagem. Felizmente, Oldman estava ali para nos proporcionar mais uma bela atuação, valorizando ainda mais o belo trabalho de maquiagem realizado em “O destino de uma nação”

MELHOR FIGURINOConfesso ter dificuldades para avaliar esta categoria. Figurino, muito mais que uma recriação de época, é um meio de transmitir as sensações e os momentos dos personagens. Dividido entre “Trama fantasma” e “A forma da água”, pendi para o filme de Del Toro, pois considerei que os figurinos deste dialogam mais com os momentos da narrativa, mesmo sabendo que o filme de Paul Thomas Anderson se passa no mundo da moda. Dessa forma, meu voto seria de “A forma da água”.

MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃOUma história bem contada depende de um bom design de produção, pois é a forma de se inserir a narrativa em seu espaço-tempo. O design de produção ganha notoriedade quando o filme retrata uma época do passado e, por isso, é comum que os indicados nesta categoria sejam filmes históricos ou futuristas. Mas é preciso assinalar que filmes que retratam épocas mais recentes e não necessariamente ligadas a eventos históricos possuem seu valor: vide a recriação dos anos 80 em “Me chame pelo seu nome” ou o início do século XXI em “Lady Bird: a hora de voar”. Dentre os cinco indicados (quatro de época – sendo dois do período da Segunda Guerra Mundial e um do período de Guerra Fria – e um futurista), meu voto iria para “A forma da água”. A composição de ambientes que evocam sentimentos distintos entre os personagens foi fundamental para minha escolha. Do laboratório opressivo e que precisa ser constantemente limpo, indicando uma sujeira ideológica incrustada, até o local onde vive a protagonista – espaço aberto aos sonhos (o cinema, as pinturas do vizinho), passando pela casa opressiva da amiga de trabalho e a lanchonete onde o vizinho homossexual procura uma paixão platônica, o trabalho de recriação de época é excelente. Para o sindicato, “A forma da água”, “Blade Runner: 2049” e “Logan” foram os vencedores. Como o filme do Wolverine não foi indicado ao Oscar, a briga será entre os dois primeiros, colocando passado e futuro em uma disputa que, creio, tende para o passado.


MELHOR FOTOGRAFIA – Após noventa longos anos, a Academia finalmente indicou uma mulher nesta categoria. É um indicador que, somado às pouquíssimas mulheres nomeadas ao prêmio de melhor direção, aponta para o papel de coadjuvante infligido às mulheres nas produções de Hollywood. Digo isso, pois o prêmio de melhor fotografia deve ser entendido como um dos principais nos quesitos técnicos, uma vez que não é possível imaginar a imagem sem uma iluminação que possibilite, ao menos, enxergarmos a ação dramática. A partir desse princípio, é possível subvertê-lo com o uso da sombra e das inúmeras variedades de luz (tons e incidências) para criar a expressividade necessária a determinada narrativa. Não seria uma surpresa se Rachel Morrison levasse a estatueta por “Mudbound: lágrimas sobre o Mississipi”. A concorrência, no entanto, conta com um dos nomes mais aclamados da área: Roger Deakins. Quatorze vezes indicado ao Oscar (incluindo por aquela maravilha estética que é “O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford”), Deakins nunca levou o prêmio para casa e, tudo leva a crer (vem colecionando prêmios na temporada, incluindo o sindicato – principal termômetro da disputa), que, este ano, ele, finalmente, levantará a estatueta mais cobiçada da indústria cinematográfica pelo seu trabalho em “Blade Runner: 2049”. O apuro estético de Deakins em cenas como a da luta no cassino prova sua capacidade técnica e expressiva e comprova ser ele merecedor deste prêmio.
 

MELHOR EDIÇÃO – Nesta categoria, premia-se “a forma do filme” (não é um trocadilho com a obra de Del Toro, mas uma referência a um dos grandes desbravadores da montagem cinematográfica: Sergei Eisenstein). Não é simplesmente transformar quarenta horas filmadas em um filme de duas horas; é dar ritmo a narrativa, criando tensão, expectativa, aproximando ou afastando elementos temporais e, até mesmo, criando atuações (sim! Existem atuações que são totalmente montadas em uma ilha de edição e, algumas delas, chegam a garantir prêmios aos intérpretes). Não à toa, alguns consideram o diretor de montagem como o braço direito do diretor e, tomada a importância que a edição tem no processo cinematográfico, é comum um diretor temer entregar seu material bruto nas mãos de outra pessoa, optando por acumular as duas funções. Este ano, ao analisar os cinco indicados, considerei “Em ritmo de fuga” o mais original e a ela daria meu voto. O sindicato preferiu “Dunkirk”, apontando o provável vencedor de domingo. Uma curiosidade importante de se levar em conta é que, historicamente, para sagrar-se campeão na categoria de melhor filme, uma produção deve estar indicada a melhor edição e, observando os cinco indicados, conclui-se que “Dunkirk”, “A forma da água” e “Três anúncios para um crime” saem com vantagem para a principal categoria da noite.


MELHOR DOCUMENTÁRIO – Documentário é filme! Falo isso para desconstruir esse muro levantado entre ficção e documentário e que denota o termo “filme” unicamente à modalidade ficção. Documentário é um gênero cinematográfico aberto, tanto quanto qualquer outro, à poética da linguagem da sétima arte. Muito influenciado por isso, meu voto iria para “Visages Villages”. O filme de Agnés Varda e JR trata das imagens da memória de uma forma delicada a partir do signo do encontro, transitando entre o real e o fabulado e desembocando numa obra rica em poesia. Outros dois documentários a que assisti estão disponíveis na Netflix. “Ícaro” me chama atenção por escancarar uma realidade comum aos documentaristas: a impossibilidade de fechar sua obra em si. O cineasta claramente tinha um objetivo, mas as circunstâncias abriram uma possibilidade ainda maior de debater um dos assuntos mais polêmicos da história recente do esporte: os escândalos envolvendo doping na Rússia. Já “Strong Island” escancara o tratamento seletivo oferecido pelos sistemas judiciário e policial dos Estados Unidos aos negros, buscando encontrar respostas para o não julgamento de brancos acusados de assassinar um negro – irmão do diretor do filme – no início dos anos noventa. Caso “Strong Island” saia vencedor, e tal possibilidade deve ser considerada tomada a importância do debate suscitado pelo filme, será a primeira vez que um homem trans subirá ao palco do Dolby Theater para receber um Oscar – algo que seria fantástico de testemunhar.


MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO Animação é filme! Tendo visto os cinco indicados na categoria, diria que é quase impossível Viva: a vida é uma festa” não receber a estatueta. O trabalho é brilhante nos mínimos detalhes, resultando em um espetáculo de cores e música em um importante olhar para a diversidade. Devo ressaltar, no entanto, o trabalho técnico empreendido em “Com amor, Van Gogh”, um processo ambicioso e de resultado artístico belíssimo (uma pena que o roteiro não alcance o mesmo nível) e a bela história contada em “The breadwinner” (o único dos indicados que, a meu ver, poderia surpreender, algo que, acredito, não ocorrerá).


MELHOR FILME ESTRANGEIRO – O melhor dos indicados à categoria de melhor filme estrangeiro é Corpo e alma” (Hungria), mas a disputa ficará entre “Uma mulher fantástica” (Chile) e “The square – a arte da discórdia” (Suécia) com – e eu torço para isto – vantagem para o representante chileno.


MELHOR ROTEIRO ADAPTADOO que dizer sobre James Ivory? Dispensa qualquer apresentação. Ivory é um cineasta veterano que, apesar das quatro indicações (incluindo a atual), nunca ganhou o Oscar. Tudo indica que, este ano, essa história chega a um final com um adendo importante: Ivory pode se tornar a pessoa mais velha a vencer um Oscar. Não seria um exagero dizer que o prêmio é merecido – não apenas pelo conjunto da obra, mas pela excelente adaptação que ele realizou do livro de André Aciman. Explorando as nuances da descoberta amorosa, “Me chame pelo seu nome” consegue ser fiel à ideia da obra original, uma vez que, optando por cortar passagens do livro e adaptado outras, Ivory elaborou um estudo de personagens muito delicado, digno de sua filmografia e merecedor dos prêmios que vem adquirindo. 
MELHOR ROTEIRO ORIGINAL – Muito mais que aquilo que conta, a qualidade de um filme está na forma como ele conta. Tal afirmativa pode incidir tanto no roteiro quanto na direção e a cumplicidade entre os dois elementos é fundamental para, ao menos, iniciar uma boa narrativa – afinal, o diretor será o responsável por traduzir intersemioticamente o texto em imagem. Em 2017, uma obra surpreendeu justamente pela originalidade em debater um tema atual e de suma importância de uma forma coesa, crua, utilizando bem os elementos cinematográficos a fim de criar tensão e medo. Estou falando de “Corra!”. A categoria de melhor roteiro original deste ano está entre as mais disputadas e os cinco indicados são dignos de ali estarem. “Corra!”, no entanto, atinge um patamar diferenciado, pois, ao mesmo tempo que cria uma narrativa atraente, apresenta uma crítica social poderosa, optando por aportar em um gênero que revela-se como ideal para o debate; basta lembrarmos que o racismo é, ainda em 2018, uma narrativa de terror para inúmeros cidadãos mundo afora e que as luzes de uma sirene policial, que, a princípio, deveriam indicar segurança, para muitos ainda é sinal de preconceito e abusos. O filme venceu a categoria de roteiro original pelo sindicato, indicando que, muito provavelmente, sairá vencedor no Oscar.


MELHOR ATOR COADJUVANTEA delicadeza com que Bobby lida com as pessoas que vivem na hospedagem onde trabalha demonstra ser ele um homem bom. O fato de, às vezes, ter de ser duro com elas cria um sentimento ambíguo que transforma Bobby em um personagem multidimensional, o qual Willem Dafoe alça a um patamar que supera a ilusão da quarta parede nos filmes. Graças a belíssima performance do sempre competente Dafoe, meu voto seria para ele e sua atuação em Projeto Flórida”, o filme mais esnobado do Oscar 2018. Sobre seus concorrentes, destaco a dupla de “Três anúncios para um crime” (o favorito na categoria é Sam Rockwell). Richard Jenkins com uma performance que não me enche os olhos (colocaria em seu lugar Michael Stuhlbarg pelo seu trabalho em “Me chame pelo seu nome”) e Christopher Plummer, cujo trabalho em “Todo o dinheiro no mundo” não vi fecham a lista de indicados. 


MELHOR ATRIZ COADJUVANTESempre defendo a consistência de um coadjuvante diante de um grande protagonista. À exceção de Mary J. Blidge (“Mudbound: lágrimas sobre o Mississipi”), todas as indicadas na categoria de atriz coadjuvante dividem a cena com um protagonista indicado em sua respectiva categoria, apontando o valor da cumplicidade entre esses personagens. A favorita do ano é Allison Janney (“Eu, Tonya”), vencedora do Globo de Ouro, do SAG e do Bafta. Meu voto, entretanto, iria para Lesley Manville e sua poderosa atuação em “Trama fantasma”. Fazer frente a Daniel Day-Lewis já é um desafio e tanto para qualquer um, mas a forma como Manville transmite a ambiguidade de sua personagem, uma figura que não cede diante da disputa de poder e do ambiente tóxico na qual se encontra, é sensacional.
 
MELHOR ATORDiria que quatro dos cinco indicados a esta categoria merecem estar aqui. O roteiro de “Roman J. Israel, Esq.” se perde muito ao longo da narrativa, minando as possibilidades de um ator competente como Denzel Washington realizar um trabalho à altura da indicação que recebeu. Seus concorrentes, por outro lado, conseguem realizar concepções muito interessantes de seus personagens: dois originais, um baseado em um livro e outro histórico. Desde que vi “Me chame pelo seu nome” no Festival do Rio (e lá se vão mais de quatro meses), repito o quanto me surpreendeu a performance de Timothée Chalamet como Elio. A expressão corporal, respiração e dicção são dignas de qualquer prêmio e não seria uma surpresa ruim caso fosse anunciado vencedor. A sua juventude frente à grandeza de um ator como Gary Oldman (“O destino de uma nação”) não depõe contra ele, mas o caso é que o britânico possui uma carreira consolidada sem o reconhecimento da Academia e tudo indica ter chegado o momento dele. Oldman não utiliza a pesada caracterização como muleta para escolhas mal realizadas (e o fraco roteiro do filme poderia levá-lo a isso), mas se alia a ela para chegar a uma performance ímpar e aqueles que lembrarem de “Drácula de Bram Stoker” hão de concordar que essa capacidade não é de hoje. O outro britânico indicado na categoria dispensa qualquer comentário; Daniel Day-Lewis é um dos melhores atores em atividade e o anúncio de sua aposentadoria – caso seja cumprida – é um duro golpe para os amantes de cinema (ao menos, é uma escolha feita em um momento de muita inspiração, pois sua performance em “Trama Fantasma” é sensacional). Já Daniel Kaluuya concebe um personagem que transmite com um olhar muito expressivo todo reconhecimento de estar imerso em um meio carregado por um racismo velado.

MELHOR ATRIZ – Não sou fã declarado de “Três anúncios para um crime”, mas não posso negar o poder de seu elenco. Frances McDormand não precisa de apresentações e, neste trabalho, confirma toda a sua capacidade enquanto atriz. As nuances de Mildred Hayes, personagem a quem dá vida, tornam latente todo o sofrimento não só da mãe que perdeu sua filha de forma extremamente violenta, mas também da mulher que ainda convive sob a sombra de um casamento abusivo. Vinte e um anos após vencer seu primeiro Oscar por “Fargo”, é chegada a hora de McDormand subir novamente ao palco da maior premiação da indústria cinematográfica e receber merecidamente mais uma estatueta dourada. A respeito de suas concorrentes: destaco as expressões corporais de Meryl Streep em “The post – a guerra secreta”, demonstrando seu domínio da personagem, uma mulher forte e acuada por um ambiente machista, e de Sally Hawkins, transmitindo a solidão em que sua personagem se vê em “A forma da água”. Saoirse Ronan, por sua vez, também consegue entregar uma personagem multidimensional em “Lady Bird: a hora de voar” e que varia momentos de afeto e revolta – variando entre uma postura infantil e adulta – tão típica da adolescência; o destaque está justamente no fato dela fazer isso sem se tornar caricata ou estereotipada. Eu, Tonya”, por outro lado, me incomoda e sinto que a atuação de Margot Robbie (e devo reconhecer que ela faz o possível com o que lhe é entregue) fica prejudicada pelo roteiro que, assumindo o desafio de tratar fatos cujas versões nunca foram devidamente provadas, torna-se ambicioso demais, dando a impressão de não cumprir aquilo a que se propõe, ficando dependente de narrações em off.


MELHOR DIREÇÃOCinco grandes desafios colocam frente a frente cinco profissionais talentosos – cada um com suas peculiaridades, alguns investindo em gêneros nos quais dificilmente eu imaginaria estarem um dia. Jordan Peele é conhecido pelo gênero humor e buscou nos filmes de horror uma forma de expressar o racismo velado que, mesmo não sendo um fator recente na sociedade americana, ganhou uma nova forma de se colocar na era pós-Obama (“Não somos racistas! Votamos no Obama!”). Christopher Nolan, diretor constantemente cogitado para o Oscar, consegue sua primeira indicação pela direção de um filme de guerra – quando “Dunkirk” foi anunciado, fiquei curioso em ver Nolan diante de um filme do gênero e foi com positiva surpresa que vi sua opção por esconder o inimigo, apostando em sua invisibilidade para transmitir a incerteza de sobrevivência e a tensão proveniente disso. Paul Thomas Anderson, grande surpresa do ano, investe no mundo da moda e da aristocracia para tratar de uma relação tóxica, apostando na sonoridade para transmitir os incômodos consequentes dessa relação. Guillermo Del Toro, caso vença – e é favorito após o prêmio do sindicato – confirmará o domínio do México nesta década, pois será a quarta vez em menos de dez anos que um mexicano receberá Oscar de direção (Alphonso Cuarón venceu por “Gravidade” e Alejandro González Iñarritú venceu por “Birdman” e “O regresso”). A escolha da Guerra Fria como ambientação e de retratar uma mulher latina, uma negra, um homossexual e uma criatura humanoide incapazes de expressar seus reais sentimentos dentro de um mundo preconceituoso ganha ecos na sociedade atual – fator que pode explicar o grande sucesso que o filme adquiriu na temporada de prêmios. Lógico que isso não seria alcançado se não fosse o bom trabalho da direção em guiar a narrativa. Não obstante tudo que afirmei, meu voto iria para a delicada direção de Greta Gerwig em “Lady Bird: a hora de voar”. A partir de uma história intimista, Gerwig consegue transmitir as angústias de uma geração que se vê reivindicando e encarando as contradições da busca por uma identidade; ela guia os personagens de forma segura e fluida sem deixar que sua narrativa se perca. 

MELHOR FILME – A votação para melhor filme é feita de forma distinta às outras categorias e o votante deve indicar numericamente e em ordem de preferência TODOS os candidatos na categoria (sendo necessário que ele comprove que assistiu a todos os indicados). O vencedor, portanto, pode ser declarado somente após vários ciclos de contagem de votos. Isso se dá, porque, caso o filme mais vezes colocado em primeiro lugar na preferência dos votantes não atinja a maioria absoluta, os votos são recontados a partir das produções escolhidas para o segundo lugar na preferência dos votantes, eliminando-se o último colocado da rodada anterior. O rito se repete até que um filme tenha conquistado mais da metade da preferência dos votantes – não sendo, necessariamente, o primeiro colocado na primeira rodada de contagem. Assim sendo – e tendo assistido a todos os concorrentes do ano –, apresento minha escolha para categoria da mesma forma que teria de apresentar caso fosse membro votante da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (AMPAS). Qual filme me surpreendeu mais positivamente? O prêmio do sindicato dos produtores foi para “A forma da água” em um indicativo do provável vencedor da noite do dia 04.

1. Lady Bird: a hora de voar
2.Trama Fantasma
3. Corra!
4. Me chame pelo seu nome
5. A forma da água
6. Três anúncios para um crime
7. Dunkirk
8. The post – a guerra secreta
9. O destino de uma nação

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

TRAMA FANTASMA (Phantom Thread – EUA, 2017)


Direção: Paul Thomas Anderson
Não deve ser fácil dividir a cena com Daniel Day-Lewis. O ator britânico, reconhecido por sua completa entrega aos personagens que dá vida, é, sem sombra de dúvida, um dos melhores atores em atividade - algo que, por si só, já impõe muita responsabilidade a quem com ele contracena. O recente anúncio de sua aposentadoria é um duro golpe aos amantes das artes dramáticas e, se de fato cumprir sua decisão, Day-Lewis, ao menos, para no auge, entregando um personagem multidimensional em mais uma bela parceria com o diretor Paul Thomas Anderson (a primeira – não me canso de elogiar – ocorreu em 2007 com “Sangue Negro”). Ao falar sobre aquele filme, já refletia sobre a importância de se ter coadjuvantes à altura dos embates travados pelo protagonista (sejam eles internos ou externos): lá, a responsabilidade caiu sobre o jovem Paul Dano e neste “Trama Fantasma”, a incumbência cabe a também jovem Vicky Krieps e a Leslie Manville. Não preciso afirmar que o bom resultado da narrativa depende da cumplicidade desse trio – mérito não apenas do trabalho de concepção dos personagens por parte dos atores, mas também da direção segura de Anderson, conhecido por criar narrativas (os roteiros são de sua autoria) recheadas de personagens complexos (vide Boogie Nights, Magnólia, O mestre).
Assim como no título original de Sangue Negro (“There will be blood” – algo como “haverá sangue” –, que funciona quase como um aviso a espectadores sobre a natureza crua da história de Daniel Plainview), “Trama fantasma” guarda muito em seu título e, desta vez, a tradução foi bem mais fiel ao título em inglês, o qual toma, por empréstimo, um signo linguístico pertencente ao campo semântico da moda (ambiente onde a narrativa se desenrola). A palavra “trama” refere-se a fios condutores interligados, formadores de uma rede – aquilo que foi tecido. É, portanto, um elemento que molda e  que, acompanhado pelo substantivo adjetivado “fantasma”, diz muito sobre o protagonista Reynolds Woodcock.
Mergulhado em um complexo de Édipo, Woodcock vive sob a sombra de sua mãe morta, seja nas lembranças que insiste em verbalizar, no trabalho que realiza obsessivamente (em certo momento ele diz: “ela me ensinou meu ofício”) ou nas escolhas que toma em sua vida pessoal – a ausência de um casamento e a dependência emocional em relação à irmã, alçada ao lugar de figura materna e de quem Reynolds necessita para mediar suas relações e gerenciar seu trabalho. Seus trejeitos ritualísticos – percebidos especialmente em seu processo matinal, desde a forma de se vestir até o valor dado ao desjejum – indicam a fragilidade de um indivíduo frente ao mundo que o cerca, preferindo se estabelecer em um universo íntimo, construído por si e para si, no qual sente-se no controle e a partir do qual exibe um falso ar de segurança. A chegada de Alma, uma jovem garçonete de origem desconhecida (apesar do sotaque e de um brevíssimo momento falando em francês, não temos noção da sua origem; sua condição de plebeia estrangeira, no entanto, é constantemente pontuada seja pela forma como é destratada durante um banquete aristocrático ou pela forma como é ignorada por certa personagem da realeza), começa a desconstruir todos os muros que Reynolds levantou em torno de si – as consequências disso é um dos grandes atrativos do roteiro.
De início, o protagonista lança mão de uma forma de cortejar – e tudo em sua psiquê e persona leva a crer ser uma atitude corriqueira quando colocado nessa condição – que, ao mesmo tempo que busca exalar sua pseudossegurança, molda (com tecidos) a pessoa amada ao seu modo em uma tentativa de projeção do seu mundo pessoal. O desenrolar da relação vai gerando uma crescente tensão, muito bem explorada por Anderson na maneira como aumenta o som do passar de manteiga em uma torrada ou da água enchendo um copo – o incômodo é trabalhado competentemente por Lewis no olhar, na respiração e na forma como o verbaliza. Krieps encarna Alma sem exageros e a maneira como a atriz apresenta suas falas de forma contida ou trabalha seus olhares revelam muito sobre a personagem; sua ausência entre as indicadas ao Oscar merece ser sentida. Leslie Manville, por sua vez, fecha a trinca, oferecendo ao espectador uma daquelas atuações inspiradas. Preocupada com os rumos da vida do irmão, Cyril surge, muitas vezes, dando sugestões que ora flertam com o bem-estar do irmão enquanto indivíduo ora limitam-se ao bom funcionamento dos negócios da família. Cyril acaba por se tornar o grande mistério de “Trama fantasma”, pois dentro de todas as disputas de poder que permeiam a história, suas motivações acabam sendo as mais ambíguas.
Embalado por uma das melhores trilhas sonoras dos últimos anos – Jonny Greenwood, multi-instrumentista da banda inglesa Radiohead, aposta em uma sonoridade que corteja o impressionismo, consolidando-se como destacado compositor de trilhas sonoras em mais uma excelente parceria com Paul Thomas Anderson –, “Trama fantasma” é um drama psicológico maduro e, sem dúvida, a melhor surpresa do Oscar 2018. 

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A FORMA DA ÁGUA (The shape of water – EUA, 2017)


Direção: Guillermo del Toro
Estrangeiro”, segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Antenor Nascentes, tem origem no francês “étranger”, que, por sua vez, origina-se do termo latino “extraneariu”, o qual significa “estranho”. O cinema de Guillermo del Toro é, como diz o próprio, “uma celebração do estranho” – dos vários estranhos que moldam as relações humanas. Em tempos de exacerbação dos discursos de ódio e da consequente e alarmante polarização entre um “nós” mais e mais individualista e um “eles” com os quais se quer o mínimo contato, o mais recente trabalho do cineasta mexicano emerge simbolicamente como uma resposta a essas tendências sociopolíticas que moldam os dias atuais.
“A forma da água” é um filme sobre estrangeiros, figuras que se encontram em um mundo hostil às suas particularidades, que, impedidas de se expressarem (não por acaso Elisa Esposito, a protagonista, é muda), buscam se identificar através dos afetos. Del Toro, em parceria com sua corroteirista Vanessa Taylor, consegue explorar esses estranhos tão comuns na chamada pós-modernidade: a hispânica, a muda, a negra (e utilizo o feminino justamente pela importância de se incluir a mulher nesta lista), o homossexual, em suma, o diferente. Não se deve esquecer que a condição de estranho se dá justamente em consequência da tomada de voz por parte dessas identidades e da descabida reação de grupos conservadores em busca da manutenção da ordem e dos ditos bons costumes por intermédio de tentativas de silenciar essas vozes. A disputa se dá, portanto, dentre outros níveis, no nível da comunicação e o filme é eficaz em abordar essa questão tão atual.
É brilhante observar como Elisa (Sally Hawkins), apesar de muda, consegue se comunicar tão naturalmente com sua colega de trabalho Zelda (Octavia Spencer) – negra e tratada como objeto por seu marido – e com seu vizinho Giles (Richard Jenkins) – homossexual, apaixonado por um rapaz bem mais novo e desempregado, muito provavelmente, por conta de sua orientação sexual –, uma vez que eles, abertos a essa comunicação, dominam os signos linguísticos que Elisa utiliza. O agente do governo Richard (e não à toa ele é homem, branco, heterossexual e cegamente cristão – basta reparar na forma como ele fala sobre Deus), por sua vez, é incapaz de se comunicar com qualquer pessoa a sua volta, limitando-se a ditar regras, expor seu poder (geralmente com violência) ou regurgitar filosofias machistas e não surpreende que, em determinado momento, ele exija de sua esposa que ela faça silêncio apesar dela demonstrar preocupação com seu estado físico. O elemento que (des)une esses polos é uma criatura anfíbia que, capturada na floresta amazônica, é levada, por Richard (Michael Shannon), para o laboratório onde Elisa e Zelda trabalham como faxineiras.
Inserido em um ambiente diferente daquele em que se desenvolveu, a criatura – chamada comumente de Forma – reúne em si toda a condição do estrangeiro: estranho, incapaz de se comunicar (por falta de ter quem queira se comunicar) e de viver livremente, hostilizado e depreciado. A identificação de Elisa não poderia ser diferente; ela mesma sente-se uma estranha em meio àqueles que a cercam: orfã, hispânica, tentando se adequar a um sonho e, talvez por isso, habitando um apartamento o qual fica em cima de um cinema e arriscando passos de dança como uma estrela de musical (uma delicadeza à parte, consolidando uma declaração de amor de Del Toro para a Sétima Arte). Ela se reconhece naquela figura anfíbia, com quem inicia um processo de comunicação retribuído pela forma como a criatura busca compreender os signos linguísticos utilizados por Elisa, e reconhece que o olhar que lhe é lançado chega despido dos preconceitos tão recorrentes entre os humanos e vale ressaltar a beleza com a qual ela corresponde à chamada desse afeto. São esses fatores que possibilitam às duas figuras vivenciarem sem medo uma história de amor sincera - sem puritanismos, sem a necessidade de projetarem uma imagem de si diferente daquilo que são.

A forma da água” é um conto de fadas no qual todas as peças estão cuidadosamente colocadas em seus lugares de tal maneira que a interação entre elas não poderia se dar de forma mais natural. Para isso, Del Toro conta com um elenco afinado e um belo design de produção cujo papel é fundamental para lançar um olhar profundo para o passado a fim de discorrer de forma poética sobre questões tão presentes em nosso dia a dia.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

ME CHAME PELO SEU NOME (LIVRO E FILME)

PARTE 1 – TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA
Ilustração: Bianca Bagnarelli (FONTE: The New Yorker)
Tradução intersemiótica é, a grosso modo, a transposição de um sistema semiótico para outro, respeitando as particularidades e similaridades entre eles. São exemplos de tradução intersemiótica as canções ou poemas baseados em pinturas e vice-versa, os espetáculos de dança baseados em histórias da tradição ocidental, balés baseados em peças teatrais, o musical da Broadway baseado naquele filme de sucesso; são vários os exemplos. O mais conhecido ou, melhor dizendo, o mais comum para o grande público são as obras audiovisuais baseadas em livros.
Durante muito tempo, no Brasil, as novelas e filmes eram, quase exclusivamente, baseados em romances famosos; foi muito comum também as novelas baseadas em radionovelas de sucesso no período pré-televisão. O cinema tomar emprestado da literatura suas narrativas não é novidade e é um fato que permeia a história da sétima arte desde o início da linguagem narrativa clássica e não são poucos os filmes de sucesso baseados em livros. O audiovisual por si só já poderia ser considerado um exemplo de tradução intersemiótica pela própria natureza, já que sua estrutura, enquanto linguagem, baseia-se justamente na transposição de palavras escritas de um roteiro para imagens em movimento recheadas de diálogos, músicas, cenários, figurinos, maquiagens, técnicas de iluminação...
Como dito anteriormente, uma boa tradução intersemiótica deve respeitar e, por isso mesmo, explorar as particularidades e similaridades de cada um dos sistemas semióticos em diálogo. É, portanto, comum a necessidade de valorizar e/ou de abrir mão de alguns detalhes a fim de se alcançar o objetivo da obra. No caso de um filme baseado em um livro, não se deve esquecer que as visões de escritor e diretor não serão as mesmas, mesmo que se espere o máximo de respeito entre as duas. Ademais, partindo do pressuposto que são inúmeras as visões sobre uma obra, é normal que se tenha preferência por uma delas. Certamente você já ouviu alguém ou se pegou dizendo que, comparando livro e filme, o livro é melhor. Isso se dá muito em função da natureza dessas linguagens e da relação que construímos com ela.
A literatura é uma linguagem quase que exclusivamente verbal (falo "quase", pois devemos ter consciência de que algumas narrativas são acompanhadas de ilustrações – é impossível separar “O Pequeno Príncipe” das suas ilustrações – ou, até mesmo, de trilhas sonoras para serem ouvidas durante a leitura) e a relação que temos ao pegar um livro nas mãos e folhear suas páginas é normalmente pautada pela solidão. Mesmo quando lemos uma história em meio a uma multidão – seja naquela leitura no ônibus, no metrô, no parque, na biblioteca ou na movimentada sala de casa – somos tomados por um estado de transe como se estivéssemos suspensos da realidade e imersos no espaço-tempo da narrativa; não alcançar este estado meditativo torna a leitura pouco prazerosa e pouco eficaz. O escritor italiano Italo Calvino, logo ao iniciar sua obra “Se um viajante numa noite de inverno”, avisa:
Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: 'Não, não quero ver televisão!'. Se não ouvirem, levante a voz: 'Estou lendo! Não quero ser perturbado!'. (…) Regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se.”
Essa possibilidade de imersão somada a abrangência das palavras no decorrer do processo codificação / decodificação abre espaço para a construção de um mundo muito particular, aproximando em graus diversos as visões do autor e do leitor. Quando um escritor, ao descrever determinado personagem, indica que ele tem cabelos castanhos, pele morena e olhos da cor das águas do rio “tal”, a imagem que farei deste personagem não será igual àquela que outros leitores farão e tampouco será igual à visão do autor. O grau de aproximação poderá variar se eu conhecer ou não o rio “tal”, mas, mesmo que eu me aproxime da visão do autor, certamente não serei capaz de construir a imagem desse personagem exatamente como o autor a concebeu, mas tal fato não me impede de “mergulhar na leitura” e tirar dela seus prazeres e angústias. Uma das grandes características da literatura é justamente essa capacidade de abrir espaço para incontáveis imagens que se possa fazer a partir das palavras escolhidas pelo autor. Ao abrirmos um livro somos dotados de um poder que não possuímos ao assistirmos a um filme e por quê?
Ao assistirmos a uma versão cinematográfica de um livro, abrimos mão desse poder de criar as imagens a partir da nossa leitura pessoal da obra literária. Esse poder fica nas mãos do diretor da obra cinematográfica que servirá de mediador entre o escritor da obra original e o espectador. O diretor, por sua vez, baseia sua visão em um roteiro que nem sempre foi escrito por ele e, além disso, depende da aprovação do(s) produtor(es). Essa perda de poder e a consequente necessidade de confiar na visão de outra(s) pessoa(s) (que está inserido em uma lógica que visa o lucro) causa incômodo e, por isso, é comum criticarmos filmes baseados em livros – aquele corte desnecessário, o personagem não era assim, o personagem “x” ganhou muito valor e por aí vai. Isso não quer dizer, no entanto, que não se possa encontrar adaptações dignas de respeito, mantendo a qualidade da história através de uma produção de qualidade. “O senhor dos anéis” era considerado impossível de ser filmado e Peter Jackson entregou três filmes de qualidade – sucesso de público e de crítica (mesmo sem ficar livre dos fãs mais puristas). “Me chame pelo seu nome”, livro de Andre Aciman recentemente adaptado para o cinema sob a direção de Luca Guadagnino, segue o mesmo caminho: uma obra cinematográfica de qualidade que soube respeitar suas bases literárias, um belo exemplar de tradução intersemiótica.
PARTE 2 – ME CHAME PELO SEU NOME (Call me by your name – EUA, 2007)
Autor: Andre Aciman
Elio é o foco narrativo do romance de Andre Aciman e, dito isto, torna-se importante manter em mente que “Me chame pelo seu nome” se dá sob o ponto de vista de alguém e que este alguém é Elio. Enquanto narrador, passa a sensação de um certo grau de amadurecimento capaz de revisitar as experiências que teve enquanto jovem. São vários os momentos em que o Elio narrador faz apontamentos sobre o comportamento de si próprio e das pessoas que o cercavam naquele verão no início da década de oitenta. Enquanto personagem, Elio é um adolescente de dezessete anos que, apesar de tentar manter uma postura de controle e conhecimento da vida, guarda em si – como qualquer rapaz da sua idade – inúmeros questionamentos e conflitos. Não à toa, as frases interrogativas permeiam toda a narrativa. Elio narrador e Elio personagem se mesclam desde o início do relato, fundindo-se em um terceiro Elio, este o nosso protagonista: aquele que transita entre o narrador amadurecido e o jovem em ebulição, aquele que busca, como diz a canção de Violeta Parra, decifrar seus próprios signos, voltando a ser, para isso, “tão frágil como um segundo”. “Me chame pelo seu nome” parte de uma entrega de seu narrador personagem, um relato sincero que expõe toda nossa fragilidade e as reações instintivas que assumimos (ou somos obrigados a assumir) para superá-la por intermédio da relação que temos conosco e com aqueles que nos cercam. Em entrevista para a Revista Cult, Aciman comenta que o romance “é sobre como examinamos a nós mesmos e a outras pessoas, e nós mesmos frente a outras pessoas. (…) É sobre ser e descobrir-se.”
“Me chame pelo seu nome” revisita a história do verão de 1983 na Riviera Italiana. Elio, então com dezessete anos, tem de deixar seu quarto por seis semanas, pois sua casa hospedará um jovem acadêmico, que, sob a condição de ajudar seu pai nos trabalhos e correspondências, tem a liberdade de produzir sua própria pesquisa; o convidado é Oliver, um americano de vinte e quatro anos cuja pesquisa gira em torno de Heráclito.
Desde o início da narrativa, a torrente de sentimentos que preenche Elio fica em evidência, impondo a ele um diálogo íntimo consigo que transita não só entre o eu e o outro, mas também entre o eu e os outros – ou ainda entre o nós e os outros e, acima de tudo, entre o eu e eu mesmo. Sentindo-se extremamente atraído pelo físico e pelo comportamento seguro de Oliver, Elio passa a caminhar entre o desejo de estar ao lado dele e o medo de ter seus sentimentos revelados (desde a forma como deve falar e se portar até a umidade constrangedora do gozo), levando-o a ações e a interpretações sobre cada manifestação do jovem americano – desde o “Até depois”, chegando a questionamentos sobre o porquê de Oliver tomar banho altas horas da madrugada ou o que ele faz quando está ausente. Perdido em sensações até então desconhecidas, Elio se expõe, apesar da sua resistência (e a vida tem dessas coisas), para um mundo sobre o qual ele acredita ter conhecimento. A exposição de Elio força a exposição de Oliver, revelando, assim, similaridades e compatibilidades que o primeiro não imaginava existirem. Oliver, apesar de ligeiramente mais velho, acaba demonstrando ter certezas, conflitos e dificuldades em expressá-los tanto quanto Elio, mas que se tornam secretos do ponto de vista do narrador personagem.
Uma das grandes qualidades de “Me chame pelo seu nome” está na sua capacidade de abordar a natureza humana com tamanha simplicidade e fluidez (fluidez, inclusive, é um conceito bem presente na obra, dialogando com Heráclito, tema da pesquisa de Oliver, quando a urgência do tempo torna-se um eixo importante para a tomada de decisões por parte dos personagens – o verão que poderia durar para sempre não durará eternamente, algo que impõe pensamentos ao protagonista do tipo: “se não depois, quando?”). Ao nos apresentar aos conflitos de Elio, conflitos que se estendem para além da figura do protagonista, envolvendo outros personagens (como não poderia deixar de ser, e o fato de o Elio narrador estar em posição mais amadurecida que a do Elio personagem possibilita um olhar mais sincero sobre os sentimentos dos outros, evitando, dessa forma, um ponto de vista estereotipado do adolescente que não consegue ir além dos seus próprios conflitos), Aciman acaba por nos oferecer um estudo comportamental que tem como base o amor: amor platônico, amor carnal, amor parental, amor de amigo. Ser um romance entre dois homens faz com que esse estudo ganhe uma conotação ainda mais profunda. Em trecho de sua entrevista à Revista Cult, Aciman, que é heterossexual, afirma:
Eu não queria aquelas típicas situações que sempre aparecem em livros sobre gays. Você sabe, a polícia atacando um casal gay, pessoas cruéis nas ruas batendo neles, alguém infectado com HIV. Eu não queria nada disso no meu romance. Eu queria imaginar: como seria a vida se um casal gay não tivesse de passar por nenhuma dessas coisas violentas e sem sentido? Veja, eu não dou nome à cidade em que a ação se passa, não descrevo rostos. E também não uso a palavra “gay” no livro. Quando você lê um livro assim, em que não há o lado de fora – ou que ele não importa tanto –, você é inevitavelmente confrontado com o interior dos personagens. Em “Me chame pelo seu nome”, você precisa olhar para dentro desses dois indivíduos que calharam de ser homens e que estão atraídos um pelo outro, mas sem perigos externos. E aí, o que acontece? É isso que eu queria explorar, e não toda a política, a perseguição, a condenação e a violência ao redor de uma relação assim.
A proeminência desse microcosmo representado pela casa de Elio, onde as manifestações humanas se dão de forma natural, despidas de preconceitos, expõe a simplicidade complexa das relações e afetos que somos chamados a construir. O fato de Aciman apresentar esses afetos de forma crua faz com que a identificação do leitor seja imediata, fazendo brotar a consciência de que as mazelas da sociedade são, muitas vezes, responsáveis por tornar ainda mais tortuosa uma estrada que deveria ser bem mais prazerosa de ser trilhada – o grande feito de “Me chame pelo seu nome” é, justamente, valorizar a importância dessa caminhada.
PARTE 3 – ME CHAME PELO SEU NOME (Call me by your name – Itália, EUA, Brasil e França, 2017)
Diretor: Luca Guadagnino
O grande desafio de se adaptar o livro de André Aciman estava na forma que roteiro e direção encontrariam para transferir o ponto de vista, que no romance está focado em Elio, para a câmera. A leitura de “Me chame pelo seu nome” nos aproxima de pensamentos e sensações de um jovem de dezessete anos – pensamentos e sensações que não são expressos abertamente pelo protagonista no decorrer da narrativa literária e que precisariam ser colocadas ao longo da narrativa fílmica sem soarem piegas nem tão discretas a ponto de sumirem; em ambos casos a adaptação correria o risco de trair sua origem.
Felizmente a dupla Luca Guadagnino e James Ivory, este mais que aquele, conseguiram traduzir a leveza erótica do romance para um filme delicado que aborda amor e afeto de forma poética sem jamais pender para o exagero – leia-se: pieguice. Ivory, roteirista veterano, opta por colocar na voz de Elio palavras pontuais e espontâneas que expressam seus sentimentos e, ao mesmo tempo, revelam a insegurança e, muitas vezes, a sua imaturidade (realçada por momentos em que, no intuito de se mostrar menos adolescente, acaba por expor, justamente, sua condição enquanto tal). Da mesma forma, os momentos de silêncio de Elio, explorados pela direção de Guadagnino (o último plano consegue transpor o expectador para o interior do protagonista, tornando difícil não se sentir apegado a Elio), assumem um papel fundamental para a obra e é neste ponto que se torna importantíssimo a entrega que Timothée Chalamet oferece em cena. Todo o desejo e todo o conflito de Elio emerge dos olhares, da respiração e da expressão corporal alcançadas pelo ator e, não à toa, ele se torna o grande destaque do filme. Já a escolha de Armie Hammer para dar corpo a Oliver demonstra muito sobre a estratégia da produção. Hammer é um ator de mais de trinta anos e Oliver, no romance, é um rapaz de vinte e quatro. No filme, entretanto, a idade de Oliver não é desvendada, diferentemente da idade de Elio (que em determinado momento brada: “eu tenho dezessete!”), abrindo espaço para que o espectador possa oferecer a idade que considere mais adequada para o americano, mesmo que seja difícil encontrar um homem de vinte e quatro anos por trás da atuação de Hammer. O fato é que a opção por ele expõe a clara decisão da produção em abrir a possibilidade de enxergarmos uma relação entre pessoas com uma diferença maior de idade que aquela proposta pelo romance. O elenco conta, ainda, com uma atuação inspirada de Michael Stuhlbarg. A sua presença traduz fator importante do romance: a opção por tratar do amor entre dois homens sem a violência que permeia tais narrativas (a ausência de homofobia, tal como no livro, abre espaço para entrarmos em contato mais íntimo com o interior dos personagens). Stuhlbarg, ao encarnar o pai de Elio, oferece leveza a um personagem que de forma compreensiva permite ao filho vivenciar experiências profundas de descoberta por meio do afeto, culminando em um dos diálogos mais bonitos da cinematografia recente.

Guadagnino, por outro lado, comete um deslize que considero a única crítica negativa ao filme. O tratamento que a sua câmera dá aos momentos sexuais de Elio com Marzia diferem do tratamento oferecido àqueles entre Elio e Oliver – “fugir” para a janela, definitivamente, não é a melhor opção quando se trata do casal protagonista do filme. “Me chame pelo seu nome”, no entanto, consegue consolidar-se enquanto obra cinematográfica sem perder a aura que envolve o romance de Aciman ao abordar o amor como um sentimento universal e o valor do afeto para a construção de nós mesmos.