sábado, 30 de dezembro de 2017

MELHORES DE 2017 - PARTE 2 (OS DEZ MELHORES)

Como prometido ontem, aqui está a lista dos meus dez filmes preferidos - aqueles assistidos no ano de 2017 e listados em ordem alfabética.
OS DEZ MELHORES FILMES VISTOS EM 2017 (EM ORDEM ALFABÉTICA):
A GHOST STORY (Direção: David Lowery) – A angustiante dimensão do tempo. Indiferente aos nossos sofrimentos. Se ele pode ser a melhor companhia para esquecermos, pode também nos impor uma dor ainda maior. O que pensar de um fantasma que, preso em um espaço afetivo, testemunha as transformações de forma passiva, percebendo que ele mesmo – enquanto memória – se esvai a medida que os anos passam. Profundo em sua proposta e contando com uma ótima trilha sonora, “A Ghost Story” consegue ser um filme de fantasma diferente dos outros (o trocadilho foi sem querer e quem pescá-lo merece um doce) justamente por subverter a ideia de que são os fantasmas que devem assustar.

CORRA! (Direção: Jordan Peele) – Através dos mecanismos do gênero terror, Peele adentra a questão do racismo, apresentando uma obra eficaz em sua intenção de chocar e de fazer refletir (vide a sensação transmitida no chegar da polícia).

GABRIEL E A MONTANHA (Direção: Fellipe Barbosa) – A estratégia de filmar nos locais onde Gabriel Buchmann passou seus últimos momentos e de utilizar aquelas pessoas que interagiram com o jovem para interpretarem a si mesmos confere um grau de realismo ao filme de Barbosa, que, apesar de ter sido amigo de juventude do protagonista, não se privou de apresentar um personagem complexo que varia da doçura ao pedantismo – este, infelizmente, um dos fatores determinantes para seu desfecho na montanha que dá título a um filme cuja estrutura consegue transitar entre ficção e documentário de forma fluida.

MANCHESTER À BEIRA-MAR (Direção: Kenneth Lonergan) – Cassey Affleck, apesar de ser protagonistas de atos reprováveis em sua vida pessoal, comprova, mais uma vez, ser melhor ator que seu irmão Ben. A partir da performance visceral de um personagem que carrega a dor do mundo nas costas e que, muito além, encontrou conforto nessa posição sem perceber que sua busca por um castigo já é o castigo em si, Kenneth Lonergan entrega uma obra angustiante (a cena da delegacia, por si só, já define todo o peso dramático do filme). Além disso, conta com uma atuação inspirada de Lucas Hedge que, apesar da pouca idade, consegue ficar à altura do protagonista, algo fundamental para o sucesso da obra.

ME CHAME PELO SEU NOME (Direção: Luca Guadagnino) – Exibido no Festival do Rio e com estreia marcada para janeiro no circuito nacional, “Me chame pelo seu nome” deve sofrer ataques de defensores da moral e dos bons costumes e não me surpreenderá se alguma parcela desse grupo (se não sua totalidade) defendam a proibição de sua exibição nos cinemas do país. O filme de Guadagnino, baseado no livro de mesmo nome (também preste a ser lançado nas livrarias), trata de descobertas, de paixões, de amor, de sentimentos sinceros e conta com uma atuação maravilhosa de Timothée Chalamet (uma das minhas favoritas no ano). Chalamet consegue exprimir não apenas o adolescente irritante e pedante, mas também o jovem que começa a ter contato com seus sentimentos e ele faz isso com movimentos corporais, respiração e falas muito bem executadas. Destaque para a fotografia de Sayombhu Mukdeeprom e, particularmente, para “Mistery of love”, canção de Sufjan Stevens.

MOONLIGHT – SOB A LUZ DO LUAR (Direção: Barry Jenkins) – Fotografia e atuações de um elenco em sintonia (e Jenkins chegou a afirmar que não permitiu que os três protagonistas se encontrassem durante as filmagens para evitar a interferência de um sobre a performance do outro), “Moonlight – sob a luz do luar”, é um filme em que a sexualidade do protagonista é apenas uma das múltiplas dimensões. Protagonista de um dos momentos mais constrangedores do ano – quando “La la land” foi anunciado equivocadamente como vencedor do Oscar de Melhor Filme – “Moonlight” teve sua vitória na principal categoria da Academia sufocada pelo episódio, fato que não diminui a força das palavras de seu diretor: “To hell with dreams! This is reality!”

PATERSON (Direção: Jim Jarmusch) – “Paterson” é um filme que se preocupa em mostrar o repetitivo cotidiano de um motorista de ônibus que busca, na poesia, uma válvula de escape para sua incapacidade de reagir à realidade, submersa na pressão da mesmice e, mesmo nos momentos em que os episódios fogem à normalidade, não demora muito para que o protagonista (que dá nome ao filme e à cidade onde mora) faça todo o ritual necessário para que as coisas voltem ao normal.

POESIA SEM FIM (Direção: Alejandro Jodorowsky) – Segunda parte da autocinebiografia de Jodorowsky, “Poesia sem fim” contou com a preciosa ajuda de doações via crowdfunding para ser filmado. Nesta obra, Jodorowsky apresenta sua aproximação com a arte e o desenvolvimento pessoal que culminou na sua saída do Chile rumo à Europa, sem ignorar a difícil relação com o pai em uma época de tensões culturais e políticas. O toque poético presente nos cenários, figurinos (as máscaras sem expressão são sensacionais) e ações dos personagens (na forma como andam ou falam) é destaque neste filme que, infelizmente, foi pouco divulgado no país.

PROJETO FLÓRIDA (Direção: Sean Baker) – Aqui, pude experimentar inúmeras sensações ao longo de duas horas: risadas, lágrimas, apreensão... “Projeto Flórida” é uma obra que, assim como seu trabalho anterior, “Tangerine”, escancara o lado esquecido de uma Flórida lembrada por conta de parques e consumo. O elenco é encantador e espero, sinceramente, por uma indicação para Willem Dafoe, pois sua atuação é digna de todo reconhecimento; admiremos também a doce Brooklynn Prince cuja entrega é de dar inveja a muito ator veterano.

TONI ERDMANN (Direção: Maren Ade) – Felicidade e afeto são alguns dos ideais apresentados no filme e que, em tempos como os que vivemos atualmente, parecem ter se perdido em meio ao ideal de sucesso. A estratégia encontrada por um pai para se aproximar da filha workaholic já vale as três horas de “Toni Erdmann”, mas a performance de “The Greatest Love of all” e a festa que desnuda todas as idiossincrasias daquele grupo de pessoas abrilhantam ainda mais o trabalho de Ade.  

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

MELHORES DE 2017 - PARTE 1 (MENÇÕES HONROSAS)

 É difícil determinar uma lista dos 10 melhores filmes assistidos em um ano. O universo e a diversidade cinematográfica é tamanha, que escolher um em detrimento de outro é uma tarefa muitas vezes injusta e angustiante, tal qual O sacrifício do cervo sagrado. A verdade é que, apesar de toda a angústia, gostamos muito de nos impor esta Escolha de Sofia e, todos os anos, debruçamo-nos em listas de indicados a prêmios, fazemos nossas apostas e, por que não?, elegemos nossos próprios melhores do ano. Resolvi fazer uma lista este ano, pois, após um 2016 distante do cinema, 2017 marcou meu retorno às salas, ao Festival do Rio e aos debates acalorados sobre bons filmes. Difícil limitar-se a dez filmes. Por isso, apesar de criar a lista, optei por fazer referência a algumas obras que, embora não tenham ficado entre os dez, poderiam ter entrado na lista. Outra característica que insisto em manter é a de não criar um Top 10, mas uma seleção de filmes em ordem alfabética.
MENÇÕES HONROSAS (EM ORDEM ALFABÉTICA):
DUNKIRK (Direção: Christopher Nolan) – filme muito bem realizado, com um aparato técnico irrepreensível (a trilha sonora de Hans Zimmer prova que o compositor voltou a sua melhor forma). Aqui, encontra-se uma das cenas mais angustiantes do ano e a ideia de um vilão quase invisível foi uma excelente estratégia para transmitir o horror da guerra. O roteiro, no entanto, deixa a desejar e, particularmente, não gostei do final nem do personagem de Keneth Brannagh (totalmente dispensável).

GOD'S OWN COUNTRY (Direção: Francis Lee) – “Choices!”, poderia dizer alguém. O filme de Francis Lee parte da concepção de que a vida é feita de escolhas e, aqui, o protagonista sofre as angústias de ter optado por ficar com a avó e com o pai doente em vez de seguir para a universidade e para um mundo muito maior que a casa de campo rodeada de ovelhas. Cria, a partir de então, uma persona que insiste em demonstrar uma capacidade de lidar com os problemas sozinho, lançando-se em relações meramente sexuais sem a mínima profundidade. Um personagem muito bem elaborado diante das escolhas que fez e daquelas que terá de fazer quando um estrangeiro chega para ajudá-lo nas tarefas que insiste em fazer de forma solitária.

HENFIL (Direção: Angela Zoé) – Em tempos como o que vivemos atualmente, é importante fazer chegar às novas gerações o trabalho de figuras como Henfil. Recheado de imagens de arquivo e permeado pelas impressões de uma nova geração de animadores, o documentário de Angela Zoé consegue fazer com que traços paralelos se encontrem rumo ao infinito.

HOMEM-ARANHA: DE VOLTA AO LAR (Direção: Jon Watts) – Mais um reboot da franquia Homem-Aranha poderia soar como mais do mesmo. Watts, no entanto, conseguiu, junto a um roteiro bem elaborado, retomar a história do herói sem a necessidade de explicar pela trilionésima vez como Peter Parker se tornou quem é. As boas-vindas do universo Marvel ao “Aranha” também conta com um vilão muito bem elaborado e encarnado com maestria por Michael Keaton (ironicamente um eterno herói da DC).

JIM E ANDY (Direção: Chris Smith) – Quase vinte anos depois, voltamos a uma das maiores esnobadas do Oscar: “O mundo de Andy”. A partir de imagens de arquivo – tipo making of do filme de Milos Forman –, Jim Carrey fala sobre o seu processo de criação (diria até: incorporação) do protagonista do filme Andy Kaufman, sobre sua carreira e sobre a arte de atuar. É realmente impressionante o que Carrey conseguiu construir e o quão longe conseguiu levar seu processo e o fato disso vir à tona comprova seu potencial como ator. Destaque para o telefonema entre Forman e Carrey que culmina em uma bela reflexão sobre as diferenças entre representar e atuar.

LA LA LAND: CANTANDO ESTAÇÕES (Direção: Damien Chazelle) – Mais jovem diretor a vencer o Oscar, Chazelle conseguiu trazer de volta a magia dos musicais e, aqui, não falamos de filmes baseados em espetáculos da Broadway, mas de um roteiro original, escrito diretamente para o cinema. A cartela “Cinemascope” que abre o filme me deu a sensação de estar diante de um filme grandioso. Ao final, no entanto, ficou a sensação do mesmo, o que não elimina as qualidades da obra. A conclusão dessa busca de sonhos é a parte mais significativa de “La La Land” e aquela troca de olhares ganha muito mais significado quando acompanhada pelo Epílogo da trilha sonora de Justin Hurwitz.

O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO (Direção: Yorgos Lanthimos) – Aqui meu cérebro bugou! Lanthimos já me causara angústia quando lançou “Dentes Caninos”. Não cheguei a assistir ao seu penúltimo filme, “O lagosta”, mas fui preparado para este “O sacrifício do cervo sagrado”. Típico filme do modelo ame ou deixe, a obra incomoda desde o primeiro plano até o último segundo. É uma angústia que vai em um crescente ininterrupto, com planos que parecem seguir os personagens e indicar um olhar invisível que os observa, uma trilha incômoda e um clímax assustador.
PLANETA DOS MACACOS: A GUERRA (Direção: Matt Reeves) – Encerrando a trilogia de cabeça erguida, este filme consegue ser atual em sua abordagem (com construção de muros e tal), certeiro na desumanização de homens cujas identidades limitam-se a patentes ou ocupações, excepcional no uso da tecnologia que dá vida aos símios, além de possuir uma das minhas trilhas sonoras preferidas no ano, composta e conduzida por Michael Giacchino. 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

CORAÇÃO DAS TREVAS (Heart of darkness – Inglaterra, 1902)

Autor: Joseph Conrad
O curso do rio se abria diante de nós e depois se fechava à nossa passagem, como se a floresta cerrasse fileiras calmamente por sobre as águas para barrar nosso caminho de volta. Penetrávamos mais e mais fundo no coração das trevas. E o silêncio ali era imenso.”
É sob o céu e diante das silhuetas da “maior, e mais vasta, cidade da Terra” que Charles Marlow, em uma atitude quase confessional – de quem deseja, desesperadamente, dissertar sobre algo –, pronuncia a frase que inicia seu relato: “Aqui também (…) foi um dos lugares mais tenebrosos da Terra”. Sua reflexão acerca de Londres, embora soe absurda, mesmo no período de trânsito entre os séculos XIX e XX, ganha sentido quando analisada sob perspectivas de outrora – época em que o progresso pertencia ao Império de Roma e Londres, ainda sem nome, era o “fim do mundo”. Diz Marlow: “imaginem um jovem e decente cidadão de toga (…) vindo para cá (…) Ele precisa viver no meio do incompreensível, que também é detestável. (…) Imaginem os remorsos crescentes, o desejo de fugir, a repulsa impotente, a rendição – o ódio.” Não à toa, ele faz referência aos primórdios londrinos, pois serve de analogia não apenas às suas vivências, mas também ao momento em que vive, à luz do progresso pós-revolução industrial, quando a Inglaterra consolidou-se como marco civilizatório do Ocidente. O mal-estar proveniente da escuridão e da inoperância da embarcação onde se encontram narrador e ouvintes ganha caráter metafórico, pois denota as trevas nas quais a autodenominada civilização mergulhou em nome do desenvolvimento e da “divina missão” de espalhá-lo pelo globo.
Parece, porém, que eu era um dos envolvidos na Obra, com maiúscula – sabem como é. Algo como um emissário da luz, uma espécie inferior de apóstolo. Besteiras dessa ordem vinham circulando em profusão naquela época, tanto em letra impressa como de viva voz, e a boa senhora, exposta à euforia de toda aquela vigarice, acabara se deixando levar. Falou de “desapegar esses milhões de ignorantes dos seus modos horrendos”, insistindo a tal ponto, que, dou-lhes a minha palavra, fiquei muito constrangido.” (CONRAD, 2008, p.23)
Marlow é o típico marinheiro viajante que, diante de tantas experiências em terras distantes, possui muitas histórias para contar. Marlow, no entanto, não é porta-voz de sua história, cabendo a um outro viajante esse papel. Coração das trevas, para muitos a obra-prima de Joseph Conrad, é uma história dentro da história e se cabe ao autor um lugar de destaque dentro da obra, esse lugar é o do narrador anônimo, aquele que, através do contato com histórias diversas (Conrad foi marinheiro e acumulou experiências por todo o mundo), é capaz de transmitir narrativas sem a necessidade de se fechar a uma verdade inexorável, abrindo, em contrapartida, as muitas possibilidades que sua fala sugere. Assume, portanto, uma posição cada vez mais rara na arte de narrar, pois, a partir da sua “faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 2012, p. 213), é capaz de aconselhar:
Aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está se desenrolando. Para obter essa sugestão, seria necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva vivida tem um nome: sabedoria. (ibidem, p. 216 et seq.)
Coração das trevas é uma obra tecida na substância viva vivida – em uma das páginas mais tenebrosas da história da humanidade – e que se torna universal, pois não se encerra em si, abrindo-se para a posteridade como deve uma obra clássica. Uma das grandes qualidades da narrativa, inclusive, está no fato dela não ignorar o seu ponto de vista; não há uma tentativa de se colocar no lugar de fala do oprimido – Marlow reconhece seu lugar de opressor e, diante disso, focaliza seu relato nas ações do europeu a partir da observação do resultado delas. A existência de um narrador anônimo que dá voz à narrativa de Marlow escancara a ideia do fato representado – incapaz de abarcar toda a realidade e, portanto, aberta a novas intervenções ou pontos de vista: “é impossível transmitir a sensação vivida de qualquer momento dado da nossa existência – aquilo que constitui a sua verdade, o seu sentido – a sua essência sutil e penetrante. É impossível. Vivemos, como sonhamos – sozinhos...” (CONRAD, op. cit., p. 46); como lembra o narrador anônimo em um dos poucos momentos em que interfere a voz de Marlow, “soubemos estar predestinados a, antes que começasse o fluxo da vazante, ouvir o relato de uma das experiências inconclusivas de Marlow.” (ibidem, p. 15)
O protagonista compartilha com outros homens do mar os episódios vividos durante o curto período em que foi marinheiro de água doce. Contratado por uma Companhia para uma missão na África colonial, Marlow, antes mesmo de embarcar rumo ao seu destino, demonstra ter ciência de estar diante de um continente retalhado pelo imperialismo europeu:
numa das extremidades um grande mapa lustroso exibindo todas as cores do arco-íris. Havia uma vasta extensão de vermelho – o que é bom de se ver a qualquer momento, porque indica que estão trabalhando de verdade naqueles lugares – um bocado de azul, um pouco de verde, pequenas manchas de laranja, e, na Costa Oriental, uma extensão comprida de púrpura, para mostrar onde os alegres pioneiros do progresso tomavam alegremente a boa cerveja clara. No entanto, não era para nenhum deles que eu ia. A minha meta era o amarelo. Bem no centro. (ibidem, p. 19)
A origem britânica de Marlow fica evidente quando, mesmo após ter vivenciado as experiências que narra, se gaba da vasta extensão rubra que marca o mapa africano em referência aos domínios ingleses na região. Sua meta, no entanto, estava no amarelo, indicador da única colônia belga no continente, o Congo e seu “rio – fascinante – mortífero – lembrando uma serpente”.
Congoleses seguram mãos decepadas por colonizadores belgas
A colonização do Congo Belga foge ao modelo consagrado historicamente pelos europeus. Sob o domínio do rei Leopoldo II, o Estado [“] Livre [”] do Congo tornou-se uma propriedade privada do monarca que, aproveitando-se das riquezas naturais do local, instituiu um dos sistemas de exploração mais sanguinários da história. Não são poucos os relatos sobre as mutilações sofridas pelos escravos que não conseguiam atingir a meta de trabalho; Conrad, no entanto, não faz referências específica às mutilações, uma vez que, segundo ele próprio, não testemunhou nenhuma: “Durante minha estadia no interior [do Congo], sempre de olhos e ouvidos bem abertos, eu nunca ouvi nada sobre o alegado costume [dos feitores belgas] de cortar as mãos dos nativos, e estou convencido de que esse costume nunca existiu ao longo do curso do rio ao qual se limitou minha experiência” (CONRAD apud. ALENCASTRO, 2008, p. 171). Por outro lado, o autor não se priva em demonstrar como o avanço do progresso foi responsável pela desumanização da população local em uma das passagens mais chocantes da obra:
Estavam morrendo aos poucos – era muito claro. Não eram inimigos, não eram criminosos, não eram mais coisa alguma que fosse terrena – nada mais que sombras negras da doença e da fome, jazendo de cambulhada na penumbra verde. Trazidos de todos os recantos da costa com toda a legalidade dos contratos temporários, perdidos em terreno hostil, alimentados com comida estranha, adoeciam, tornavam-se ineficientes, e finalmente lhes permitiam que se arrastassem até ali para o descanso. Aquelas formas moribundas eram livres como o ar – e quase igualmente insubstanciais. (CONRAD, op. cit., p. 30)
Desumanização, inclusive, pode ser a palavra que melhor define o proclamado processo civilizatório que Coração das trevas denuncia. A obra demonstra reiteradamente o quanto os mares do progresso mergulharam a humanidade nas trevas e o determinismo não se priva de lançar sua mão sobre alguns dos personagens – curiosamente aqueles que são notadamente identificados pelos seus respectivos nomes; a saber: Marlow, Fresvelen e Kurtz.
Fresvelen, antecessor de Marlow no comando da embarcação, é descrito como “a criatura mais gentil e tranquila que jamais caminhou sobre dois pés”, mas que após uma negociação envolvendo duas galinhas, “achou que fora enganado de alguma forma no negócio, desceu do barco e deu uma sova de pau no chefe da aldeia.”
já estava lá havia alguns anos envolvido com a nobre causa, sabem, e é provável que tenha finalmente sentido a necessidade de reafirmar de algum modo o seu respeito por si mesmo. E por isso surrou o pobre velho negro sem dó nem piedade, enquanto uma parte do povo dele assistia, paralisada, até algum homem – disseram-me que foi o filho do chefe – em desespero diante dos gritos do pobre velho, reagir com uma ameaça de estocada da sua lança – e é claro que ela penetrou facilmente entre as omoplatas do homem branco. (ibidem, p. 18)
Kurtz, por sua vez, é a grande figura dominante de Coração das Trevas. Objetivo principal da missão de Marlow, Kurtz é um mistério para o protagonista; identificado como um “homem notável”, ele, reconhecidamente, somatiza todo o processo civilizatório – todo o progresso – em si. Não à toa, é de interesse geral o retorno dele para a Europa. Encerrado na floresta – fornecendo em quantidade, através de “métodos inadequados”, o marfim da melhor qualidade –, Kurtz escancara o sistema corrupto que rege a grandiosa missão europeia, recebendo em retorno a admiração de Marlow e a desconfiança dos outros funcionários da Companhia. Ademais, Kurtz é a figura responsável por elaborar o importante relatório sobre a “Supressão dos Costumes Selvagens” cujo pós-escrito “Exterminem todos os brutos!” resume toda expansão da civilização moderna.
Os elementos reunidos transformam Coração das trevas em uma denúncia contra o imperialismo europeu e em uma crítica profunda aos rumos que a humanidade tomou em nome do progresso – um olhar profundo sobre a eficácia das ações tomadas em nome da civilização e da salvação dos chamados brutos, restando-nos repetir, assim como Kurtz, as palavras que resumem o mal-estar proveniente da consciência dos fatos: “O horror! O horror!”
REFERÊNCIAS:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Persistência das trevas. In: CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 155 – 179. (Posfácio)
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1). p. 213 – 240.

CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

GABRIEL E A MONTANHA (Brasil, 2017)


Direção: Fellipe Barbosa
Não tem como terminar de assistir a “Gabriel e a montanha” e não pensar em “Na natureza selvagem”. Os dois filmes partem de episódios verídicos e muito semelhantes, embora os objetivos dos respectivos protagonistas e a forma como suas histórias são contadas possuam suas particularidades. Diferentemente do filme de Sean Penn (lançado dez anos atrás), Fellipe Barbosa optou por convocar aqueles que, de alguma forma, exerceram um papel importante durante a viagem de seu amigo de infância, Gabriel Buchmann, para interpretarem a si mesmos, lançando mão, em vários momentos, de depoimentos em off desses mesmos personagens. Tal estratégia e o uso das verdadeiras locações onde o protagonista viveu sua história caracterizam “Gabriel e a Montanha” como um docudrama, conferindo maior empatia e veracidade ao que vemos na tela (além de desconstruir o muro que inconscientemente levantamos entre ficção e documentário). 
Interpretado com leveza por João Pedro Zappa, Gabriel é um jovem economista que, prestes a ingressar em um doutorado sobre políticas públicas nos Estados Unidos, decide viajar pela África a fim de conhecer as condições de pobreza daquele continente e, para isso, opta por “tornar-se” um local, fugindo, dessa forma, dos estereótipos que o identificariam como turista. 
A premissa que motiva Gabriel já demonstra em si as contradições que o preenchem e a forma como Zappa consegue transmiti-las sem exageros é o ponto alto de sua atuação. A escolha do jovem de sair do Brasil, onde teria condições suficientes para adquirir conhecimento sobre pobreza extrema, bem como sua decisão de viver como local fazem brotar o interesse por conhecê-lo melhor. Sua namorada, em certo momento, brada contundente que ele “fugiu para a África”, abrindo espaço para considerarmos outras motivações (íntimas, talvez) para sua viagem, as quais desconhecemos, mas que aproximam o espectador do protagonista. Mesclam-se, assim, atitudes delicadas – que justificam o carinho e o respeito com que as pessoas se referem a ele e o sentimento que expressam ao falarem sobre os eventos que selam sua história – e outras individualistas ou, até mesmo, pedantes. São essas contradições, inclusive, que determinam seu destino e é positiva a decisão de Barbosa por não omiti-las – algo extremamente difícil, uma vez que, segundo palavras do próprio diretor, a obra foi a maneira de reencontrar o amigo de infância e, ao mesmo tempo, fundamental para a construção de um personagem multidimensional.
É possível se questionar ao final da projeção: como um jovem imbuído do desejo de explorar a África e a realidade de seu povo tenha optado pela surdez ao ser prevenido, por aqueles que buscava conhecer, dos perigos que enfrentaria se mantivesse sua posição de subir, mesmo depois de dispensar o guia, a montanha mais alta do Malauí? A resposta vem da dolorosa compreensão do desfecho de Gabriel e que só pode ser alcançada a partir deste belo filme.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

PLANETA DOS MACACOS: A GUERRA (War for the Planet of the Apes – EUA, 2017)

Direção: Matt Reeves
A guerra ainda é um meio eficaz de se estudar a natureza humana – infelizmente; não à toa os cinemas e as livrarias vivem abarrotados de obras do gênero. Ela é uma das atividades em que mais se evidenciam as relações de poder, justamente por terem, na maioria das vezes, uma motivação banal que a justifica (e quando falo em justificar quero expor o quanto aceitamos, enquanto sociedade, os discursos de guerra – até mesmo os metafóricos). Finalizando a trilogia que retomou a ficção distópica de 1968 (estrelada por Charlton Heston), “Planeta dos Macacos: a guerra” consolida-se como uma produção de seu tempo não só pela tecnologia empregada, mas também pela narrativa que apresenta.
Iniciando com um resumo do que se passou nos filmes anteriores, a direção não gasta tempo para introduções e joga o espectador, logo de cara, em uma cena de batalha entre humanos e macacos – elemento, este, que não é recorrente no decorrer da história e que demonstra o quanto a sombra da guerra se impõe através do discurso e da ameaça muito mais que em ações armadas (ideia diante da qual a humanidade se viu em tantos anos de Guerra Fria). Dito isso, percebe-se que não há nenhuma incoerência no título do filme. Outra decisão acertada do roteiro encontra-se na ausência de nomes para os personagens humanos, cuja alcunha limita-se a títulos ou apelidos vagos como “Coronel” ou “Preacher” (pregador / propagador de doutrina), enquanto os macacos são identificados pelos seus nomes (Cesar, Maurice, Cornelius), algo que oferece humanidade aos símios. O fator humanidade, no entanto, não seria tão eficaz caso o design de produção e os efeitos especiais não fossem tão bem realizados, possibilitando a utilização de planos em close dos personagens sem acusar o tratamento digital dado às imagens – um espetáculo por si só dentro de toda a produção.
“Planeta dos Macacos: a guerra” faz referências a outros filmes do gênero, em especial “Appocalipse Now” (repare nos helicópteros chegando e na figura de Woody Harrelson, praticamente um Coronel Kurtz entregue à loucura). Além disso, é quase impossível não perceber as indiretas à política atual dos Estados Unidos, que aposta na construção de muros, expondo uma total dificuldade de comunicação – carência que indica a perda de humanidade entre os homens; todas essas referências estão presentes. Dessa forma, a produção se insere na atualidade – é impossível imaginá-la sem o aparato tecnológico disponível hoje em dia e sem as bases no discurso político atual (algo que era extremamente forte nos filmes originais).

Não poderia terminar essa resenha crítica sem ressaltar a força da trilha sonora de Michael Giacchino e a beleza estética do plano que encerra o filme e que remete ao cinema clássico.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

MANCHESTER À BEIRA MAR (Manchester by the sea – EUA, 2016)

Direção: Kenneth Lonergan
Dias atrás, uma amiga, comentando sobre sua recém-iniciada terapia, afirmou que, durante as sessões, sentia-se mexendo em uma caixinha cujo conteúdo não gostava de tomar conhecimento, definindo, quase inconscientemente, a definição de terapia. A caixinha em questão poderia ter uma etiqueta indicando “recalque”, pois a verdade é que lá estavam guardados acontecimentos e sensações que ela preferiu recalcar, ou seja, preferiu não admitir no plano consciente. Não devemos, entretanto, considerar que a caixinha possua espaço infinito, pois, em algum momento, ela pode explodir – sem antes dar sinais de iminência através de sintomas depressivos, de ansiedade, atos falhos, sintomas psicossomáticos entre outros. Centrando-se na depressão, com cuja incidência já convivi e, a partir da qual, passei a desenvolver um sinal de alerta bem estruturado que me avisa quando aquelas sensações começam a emergir em meu íntimo, procurei oferecer uma palavra de alívio àquela amiga tão especial, pois tenho conhecimento de que, por mais difícil que seja mergulhar na caixinha, é fundamental a evolução que carregamos para a vida desta imersão nas sombras de nosso inconsciente. Recordei, a partir dessa conversa, de uma sessão específica de terapia na qual o terapeuta afirmou que existem pacientes que estão tão tomados pela depressão que o próprio inconsciente não apresentava respostas a estímulos externos, fazendo com que aquelas pessoas vivessem em um estado de letargia que as aproximariam mais de zumbis que de indivíduos. Todo esse depoimento pessoal para chegar em Lee Chandler, personagem de Casey Affleck no ótimo "Manchester à beira mar". Chandler é um zelador que convive com as mais variadas formas de (des)tratos no desenrolar de suas atividades cotidianas e que, após um telefonema anunciando a morte de seu irmão, vê a necessidade de retornar a sua Manchester, fato que o fará ter contato com sua caixinha de recalques. 
A partir dessa premissa, o diretor Kenneth Lonergan oferece ao espectador uma viagem angustiante por memórias que explicam o perfil letárgico de Chandler e sua inaptidão a grandes responsabilidades, unicamente por sentir-se incapaz de assumi-las e, muito além, por sentir-se confortável em seu estado emocional. Nesse contexto, Chandler é colocado diante do desejo de seu falecido irmão que assuma a tutoria de seu sobrinho Patrick, o qual, interpretado pela revelação Lucas Hedges, não apresenta os estereótipos do adolescente problemático, algo que poderia levar o filme ao melodrama barato. (Abrindo um parêntese: várias vezes comentei entre amigos sobre a importância de um coadjuvante que seja capaz de confrontar um protagonista tão dominante e complexo em cena como o caso do Lee Chandler de Affleck – cheguei a ter a mesma opinião sobre Paul Dano em "SangueNegro", dominado por Daniel Day-Lewis e, bem recentemente, sobre Humberto Carrão em "Aquarius", dominado pela belíssima Sonia Braga. É impossível conceber a relação entre Chandler e Patrick se a atuação de Hedges não fosse valorizada e bem trabalhada pela direção e pelo ator, tornando sua indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante muito justa. Fechando o parêntese.) 
A relação de proximidade e distanciamento, realçada pelo afeto e pela convergência da dor imediata de ambos – algo que, concomitantemente pode aproximar ou criar distâncias intransponíveis entre parentes – é o elemento motor da ação dramática e se coloca como questão para Chandler tomar sua decisão sobre o desejo do irmão, o qual, em seu conjunto, inclui seu retorno definitivo para Manchester (lembrando que Manchester representa a caixinha do recalque). Esse conflito de Chandler, salientado por suas memórias, facilmente encaminharia a narrativa para sua explosão, algo que Affleck consegue evitar de forma magistral, traçando assim a personalidade doída de seu personagem – a cena com Michelle Williams demonstra essa necessidade de fuga (melhor dizer de manutenção de seu estado emocional que implica manter-se em sua zona de conforto, mesmo que ela represente um caso de depressão ou a busca por um castigo que nunca aparece, sem notar, neste caso, que a busca pelo castigo já é o castigo em si). Coloca-se em questão, portanto, projetos de vida e como, dentro de nossas capacidades emocionais, lidamos com as responsabilidades que se impõem diante de nós e não poderia deixar de pensar, mais uma vez em um lapso pessoal, em minha avó que, sem ter nenhuma obrigação assumiu o desafio de criar um neto diante da perda de sua nora. "Manchester à beira mar" é, sem dúvida, uma experiência angustiante e, até por isso, extremamente humano e um poderoso convite à reflexão.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

LA LA LAND E A CRISE DE IDENTIDADE DE HOLLYWOOD

Na última terça-feira, fui surpreendido quando, ao final do anúncio dos indicados ao Oscar 2017, o filme "La La Land" totalizou quatorze indicações ao maior prêmio da indústria cinematográfica. A marca representa um feito que não se repetia há vinte anos, quando "Titanic" igualou o recorde de indicações de "A malvada". Igualar o recorde de indicações ao Oscar oferece um ar de respeito ao filme – um respeito que, ao assistir o musical de Damien Chazelle, não se materializou no meu íntimo enquanto espectador e amante da sétima arte. "La La Land", para mim, causa, muito mais, um frenesi que um respeito; a obra toca naquilo que Hollywood precisa para se afirmar em tempos de crise identitária: seu ego (o que não deve ser entendido como algo, necessariamente, ruim).
Desde o seu surgimento, o cinema convive com profecias que afirmam seu desaparecimento frente a uma nova tecnologia ou linguagem; até hoje, as profecias não se concretizaram, uma vez que o cinema soube se reinventar, mesmo que, para isso, tenha voltado seu olhar para o passado, retomando características que tenham o marcado em determinado momento de sua história. O surgimento da linguagem narrativa clássica, a entrada do som, das cores, a concorrência da televisão e do videocassete, DVD, Blu-Ray, o advento da tecnologia 3D são algumas das crises que posso listar. Com a emergência do streaming não seria diferente e o cinema, mais uma vez, se vê em crise de identidade e, como todo indivíduo em tal condição, carece de massagens no ego – um estímulo que comprove que sua presença ainda é necessária e que ainda pode sentir-se amado. Basta olhar para a história recente da Academia para perceber que a sétima arte é um tema bem recebido por Hollywood; filmes como "Birdman" (9 indicações ao Oscar – venceu quatro), "Argo" (7 indicações ao Oscar – venceu três) e "O artista" (10 indicações ao Oscar – venceu seis) são obras vencedoras da categoria máxima do Oscar e poderíamos, ainda, acrescentar a indicação de "A invenção de Hugo Cabret" nesta lista. Não há surpresa, portanto, que "La La Land" cause tanta excitação entre críticos. 
Não se trata de um filme ruim, trata-se de um filme que, na minha humilde opinião, promete muito e nunca cumpre. Um filme que começa com uma cartela indicando que foi filmado em Cinemascope, algo que remete a filmes grandiosos como "O manto sagrado" (filme que inaugurou a técnica) e "A noviça rebelde" (para citar um grande musical), mas com uma estrutura narrativa batida (dividida em estações do ano) e sem nenhum momento realmente marcante ou que problematize algo realmente relevante (confesso que existe uma problematização bem sensível e bem contemporânea na última sequência do filme). La La Land é um filme sobre sonhos e não existiria lugar mais adequado para essa narrativa que Hollywood, a fábrica de sonhos. Chazelle, entretanto, idealiza demais essa estrutura e, mesmo acompanhando todos os esforços dos protagonistas, no fundo sabemos o que revelar-se-á no final e saímos do cinema com a sensação de mais do mesmo. 
Por tal razão, a Academia, ao confrontar "La La Land" com "A chegada" e "Manchester à beira mar" (filmes aos quais eu assisti) ou com "Moonlight: sob a luz do luar" (cujo trailer já vem à tona como um soco no estômago) se coloca em uma encruzilhada entre problematizar questões ou premiar o “mais do mesmo”, algo que seria curioso após as investidas da presidente da AMPAS (Academy of Motion Picture Arts and Sciences), Cheryl Boone Isaacs, em trazer mais diversidade à premiação – algo, parcialmente, alcançado no tocante às indicações, mas que pode parecer inútil no abrir dos envelopes.