terça-feira, 9 de agosto de 2016

ELEFANTE


Sob os pés calejados e roídos,
folhas secas estalam
um eco doído
e, afastado do urro das multidões,
adentra a sombra da floresta,
carregando o peso de si
para, enfim, sem alarde,
encontrar paz e silêncio
em seu tão desejado fim.
Mario Chris

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

MUNIQUE (Munich – EUA, 2005)

Direção: Steven Spielberg

Munique tem tudo que se espera de um filme de Steven Spielberg: sentimentalismo (pense na relação Elliot / E.T. em E.T. - o extraterrestre), tensão (lembre dos raptores na cozinha em Parque dos dinossauros), cenas grandiosas (como o desembarque norte-americano na Normandia em O resgate do soldado Ryan) somado a um teor crítico que serve de base para um belo estudo de personagem. Se por um lado podemos encarar Munique como um retorno do diretor às suas origens judaicas pouco mais de dez anos após conceber A lista de Schindler, devemos compreender que, aqui, Spielberg soa bem mais crítico com relação às ações dos judeus. No filme que lhe rendeu seu primeiro Oscar de direção, Spielberg foca os horrores da solução final aplicada pelos nazistas aos judeus, criando claramente uma relação entre bem e mal da qual emerge a figura de um salvador que, inicialmente movido por seus interesses, conseguiu salvar vários seres humanos de um fim trágico nas mãos de um sistema ideológico cego. Em Munique, entretanto, é difícil determinar heróis – é impossível estruturar uma relação bem versus mal, mesmo havendo uma figura central na narrativa, pois os interesses que movem a história (ou a História) são muito mais complexos e difusos – algo que se torna perceptível nos próprios questionamentos do protagonista.
Munique tem início na Vila Olímpica construída na cidade que dá nome ao filme. Foi lá que, em 1972, o grupo terrorista palestino conhecido como Setembro Negro invadiu o apartamento destinado à delegação israelense, mantendo toda a comitiva refém até o trágico desfecho do episódio com as mortes de todos os atletas e da grande maioria dos terroristas. É impossível não perceber o quanto Spielberg cria, no primeiro ato do filme, um processo de aproximação do espectador com a situação, mas não se engane ao achar que ele toma partido de um dos extremos desse cabo de guerra – perceba o espaço que se abre, logo no início da trama, para a reação tanto de palestinos quanto de judeus da cobertura midiática feita sobre o caso; não faltam lágrimas em ambos os lados, fato que busca humanizar as figuras envolvidas no atentado (o que também é acentuado pelos olhares dos personagens em questão). Apenas a reconstrução desses acontecimentos é digna de todo reconhecimento ao trabalho de direção, mas a sequência é apenas o ponto de partida para a complexa trama que se segue e que se baseia na resposta que o governo de Israel preparou para o caso.
Encabeçada pela primeira-ministra israelense Golda Meir, o Mossad (serviço de inteligência local) convoca Avner, antigo guarda-costas de Meir e marido devoto que aguarda o nascimento do primeiro filho, para liderar um dos grupos que têm a missão de eliminar supostas lideranças palestinas que planejaram o atentado na Alemanha Ocidental. Tomado pelo sentimento de pertencimento à sua comunidade e pela sombra de seu pai, Avner aceita a missão, deixando para trás seu lar e sua família a fim de, junto a mais quatro especialistas, mudar-se para Europa e realizar o serviço pelo qual foi contratado. O desenrolar da missão, este sim o grande desenlace do perfil crítico que a obra possui, gera transformações nesses personagens e causa impacto no espectador que se vê diante de uma dicotomia curiosa. Por um lado, diante do afeto construído dentro do grupo e, por outro, da frieza de suas ações. Cada personagem ali, inclusive, reage a sua frieza de forma bem particular; se Steve (Daniel Craig, pré-James Bond) chega a bradar que o “único sangue que lhe importa é o sangue judeu”, Carl se questiona sobre a estranheza de imaginar-se como um assassino (para logo receber a resposta de Avner: “Então imagine-se como outra coisa”).
Todavia o questionamento mais curioso desses personagens gira em torno da eficácia de suas ações e do fato delas condizerem, ou não, com o que o governo israelense afirma. A percepção de que seus alvos são substituídos por líderes piores e a dúvida se aqueles alvos tinham, realmente, ligação com os ocorridos em Munique ou se estavam, na verdade, eliminando lideranças intelectuais que defendiam o Estado Palestino vão transformando as percepções dos protagonistas. Não à toa, a narrativa proporciona um encontro inusitado entre um militante da OLP (Organização para Libertação da Palestina) e Avner, que, durante um profundo diálogo, tem a possibilidade de questionar as motivações dos palestinos para suas ações; a questão de pertencer a um espaço que possa chamar de pátria é uma resposta muito direta, tornando-se importantíssimo perceber o eco proveniente desse diálogo na conversa que, adiante, o mesmo Avner terá com sua mãe.
Outra transformação importante que se impõe ao protagonista está no fato de perceber a lógica do terror – reconhecer-se como um perseguidor de terroristas, torna-o um terrorista a ser perseguido por outros terroristas. Avner dá-se conta de que pode ser o próximo eliminado e a paranoia passa a determinar algumas de suas atitudes, consolidando a maldição que o perseguirá. Não se pode ignorar, após tanto falar de Avner, o belo trabalho realizado por seu intérprete. Eric Bana, ignorado nas principais premiações daquele biênio de 2005/2006, proporciona um ar inicialmente contido e controlado ao personagem que, ao desenrolar da trama, vai se transformando gradativamente (algo que se nota na atitude do personagem diante de sua paixão pela cozinha) e  faz com que o espectador estranhe certas atitudes, embora seja capaz de compreendê-las, uma vez que Spielberg jamais desmerece a capacidade crítica do espectador e não exita em expor a barbárie que preenche e envolve os personagens. O que pensar da cena mais chocante do filme, relacionado a um assassinato frio e meticuloso seguida de uma atitude simples de Avner logo repreendida por um dos companheiros? Mesmo sem entrar em detalhes para evitar spoilers, a cena foge a tudo que já assisti na obra de Spielberg e, por isso, é fácil de ser reconhecida.

Spielberg, embalado pelo seu parceiro usual John Williams (em mais uma bela trilha sonora – talvez a que eu mais goste, além das canônicas), elabora um estudo meticuloso e demonstra maturidade para explorar um caminho tão cheio de complexidades e, em certo momento da narrativa, uma fala de Avner resume o sentimento que preenche o espectador ao fim da projeção: “Não há paz no final disso”.