Direção: Kenneth Lonergan
Dias atrás, uma amiga, comentando sobre sua recém-iniciada terapia, afirmou que, durante as sessões, sentia-se mexendo em uma caixinha cujo conteúdo não gostava de tomar conhecimento, definindo, quase inconscientemente, a definição de terapia. A caixinha em questão poderia ter uma etiqueta indicando “recalque”, pois a verdade é que lá estavam guardados acontecimentos e sensações que ela preferiu recalcar, ou seja, preferiu não admitir no plano consciente. Não devemos, entretanto, considerar que a caixinha possua espaço infinito, pois, em algum momento, ela pode explodir – sem antes dar sinais de iminência através de sintomas depressivos, de ansiedade, atos falhos, sintomas psicossomáticos entre outros. Centrando-se na depressão, com cuja incidência já convivi e, a partir da qual, passei a desenvolver um sinal de alerta bem estruturado que me avisa quando aquelas sensações começam a emergir em meu íntimo, procurei oferecer uma palavra de alívio àquela amiga tão especial, pois tenho conhecimento de que, por mais difícil que seja mergulhar na caixinha, é fundamental a evolução que carregamos para a vida desta imersão nas sombras de nosso inconsciente. Recordei, a partir dessa conversa, de uma sessão específica de terapia na qual o terapeuta afirmou que existem pacientes que estão tão tomados pela depressão que o próprio inconsciente não apresentava respostas a estímulos externos, fazendo com que aquelas pessoas vivessem em um estado de letargia que as aproximariam mais de zumbis que de indivíduos. Todo esse depoimento pessoal para chegar em Lee Chandler, personagem de Casey Affleck no ótimo "Manchester à beira mar". Chandler é um zelador que convive com as mais variadas formas de (des)tratos no desenrolar de suas atividades cotidianas e que, após um telefonema anunciando a morte de seu irmão, vê a necessidade de retornar a sua Manchester, fato que o fará ter contato com sua caixinha de recalques.
A partir dessa premissa, o diretor Kenneth Lonergan oferece ao espectador uma viagem angustiante por memórias que explicam o perfil letárgico de Chandler e sua inaptidão a grandes responsabilidades, unicamente por sentir-se incapaz de assumi-las e, muito além, por sentir-se confortável em seu estado emocional. Nesse contexto, Chandler é colocado diante do desejo de seu falecido irmão que assuma a tutoria de seu sobrinho Patrick, o qual, interpretado pela revelação Lucas Hedges, não apresenta os estereótipos do adolescente problemático, algo que poderia levar o filme ao melodrama barato. (Abrindo um parêntese: várias vezes comentei entre amigos sobre a importância de um coadjuvante que seja capaz de confrontar um protagonista tão dominante e complexo em cena como o caso do Lee Chandler de Affleck – cheguei a ter a mesma opinião sobre Paul Dano em "SangueNegro", dominado por Daniel Day-Lewis e, bem recentemente, sobre Humberto Carrão em "Aquarius", dominado pela belíssima Sonia Braga. É impossível conceber a relação entre Chandler e Patrick se a atuação de Hedges não fosse valorizada e bem trabalhada pela direção e pelo ator, tornando sua indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante muito justa. Fechando o parêntese.)
A relação de proximidade e distanciamento, realçada pelo afeto e pela convergência da dor imediata de ambos – algo que, concomitantemente pode aproximar ou criar distâncias intransponíveis entre parentes – é o elemento motor da ação dramática e se coloca como questão para Chandler tomar sua decisão sobre o desejo do irmão, o qual, em seu conjunto, inclui seu retorno definitivo para Manchester (lembrando que Manchester representa a caixinha do recalque). Esse conflito de Chandler, salientado por suas memórias, facilmente encaminharia a narrativa para sua explosão, algo que Affleck consegue evitar de forma magistral, traçando assim a personalidade doída de seu personagem – a cena com Michelle Williams demonstra essa necessidade de fuga (melhor dizer de manutenção de seu estado emocional que implica manter-se em sua zona de conforto, mesmo que ela represente um caso de depressão ou a busca por um castigo que nunca aparece, sem notar, neste caso, que a busca pelo castigo já é o castigo em si). Coloca-se em questão, portanto, projetos de vida e como, dentro de nossas capacidades emocionais, lidamos com as responsabilidades que se impõem diante de nós e não poderia deixar de pensar, mais uma vez em um lapso pessoal, em minha avó que, sem ter nenhuma obrigação assumiu o desafio de criar um neto diante da perda de sua nora. "Manchester à beira mar" é, sem dúvida, uma experiência angustiante e, até por isso, extremamente humano e um poderoso convite à reflexão.
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