segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

ME CHAME PELO SEU NOME (LIVRO E FILME)

PARTE 1 – TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA
Ilustração: Bianca Bagnarelli (FONTE: The New Yorker)
Tradução intersemiótica é, a grosso modo, a transposição de um sistema semiótico para outro, respeitando as particularidades e similaridades entre eles. São exemplos de tradução intersemiótica as canções ou poemas baseados em pinturas e vice-versa, os espetáculos de dança baseados em histórias da tradição ocidental, balés baseados em peças teatrais, o musical da Broadway baseado naquele filme de sucesso; são vários os exemplos. O mais conhecido ou, melhor dizendo, o mais comum para o grande público são as obras audiovisuais baseadas em livros.
Durante muito tempo, no Brasil, as novelas e filmes eram, quase exclusivamente, baseados em romances famosos; foi muito comum também as novelas baseadas em radionovelas de sucesso no período pré-televisão. O cinema tomar emprestado da literatura suas narrativas não é novidade e é um fato que permeia a história da sétima arte desde o início da linguagem narrativa clássica e não são poucos os filmes de sucesso baseados em livros. O audiovisual por si só já poderia ser considerado um exemplo de tradução intersemiótica pela própria natureza, já que sua estrutura, enquanto linguagem, baseia-se justamente na transposição de palavras escritas de um roteiro para imagens em movimento recheadas de diálogos, músicas, cenários, figurinos, maquiagens, técnicas de iluminação...
Como dito anteriormente, uma boa tradução intersemiótica deve respeitar e, por isso mesmo, explorar as particularidades e similaridades de cada um dos sistemas semióticos em diálogo. É, portanto, comum a necessidade de valorizar e/ou de abrir mão de alguns detalhes a fim de se alcançar o objetivo da obra. No caso de um filme baseado em um livro, não se deve esquecer que as visões de escritor e diretor não serão as mesmas, mesmo que se espere o máximo de respeito entre as duas. Ademais, partindo do pressuposto que são inúmeras as visões sobre uma obra, é normal que se tenha preferência por uma delas. Certamente você já ouviu alguém ou se pegou dizendo que, comparando livro e filme, o livro é melhor. Isso se dá muito em função da natureza dessas linguagens e da relação que construímos com ela.
A literatura é uma linguagem quase que exclusivamente verbal (falo "quase", pois devemos ter consciência de que algumas narrativas são acompanhadas de ilustrações – é impossível separar “O Pequeno Príncipe” das suas ilustrações – ou, até mesmo, de trilhas sonoras para serem ouvidas durante a leitura) e a relação que temos ao pegar um livro nas mãos e folhear suas páginas é normalmente pautada pela solidão. Mesmo quando lemos uma história em meio a uma multidão – seja naquela leitura no ônibus, no metrô, no parque, na biblioteca ou na movimentada sala de casa – somos tomados por um estado de transe como se estivéssemos suspensos da realidade e imersos no espaço-tempo da narrativa; não alcançar este estado meditativo torna a leitura pouco prazerosa e pouco eficaz. O escritor italiano Italo Calvino, logo ao iniciar sua obra “Se um viajante numa noite de inverno”, avisa:
Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: 'Não, não quero ver televisão!'. Se não ouvirem, levante a voz: 'Estou lendo! Não quero ser perturbado!'. (…) Regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se.”
Essa possibilidade de imersão somada a abrangência das palavras no decorrer do processo codificação / decodificação abre espaço para a construção de um mundo muito particular, aproximando em graus diversos as visões do autor e do leitor. Quando um escritor, ao descrever determinado personagem, indica que ele tem cabelos castanhos, pele morena e olhos da cor das águas do rio “tal”, a imagem que farei deste personagem não será igual àquela que outros leitores farão e tampouco será igual à visão do autor. O grau de aproximação poderá variar se eu conhecer ou não o rio “tal”, mas, mesmo que eu me aproxime da visão do autor, certamente não serei capaz de construir a imagem desse personagem exatamente como o autor a concebeu, mas tal fato não me impede de “mergulhar na leitura” e tirar dela seus prazeres e angústias. Uma das grandes características da literatura é justamente essa capacidade de abrir espaço para incontáveis imagens que se possa fazer a partir das palavras escolhidas pelo autor. Ao abrirmos um livro somos dotados de um poder que não possuímos ao assistirmos a um filme e por quê?
Ao assistirmos a uma versão cinematográfica de um livro, abrimos mão desse poder de criar as imagens a partir da nossa leitura pessoal da obra literária. Esse poder fica nas mãos do diretor da obra cinematográfica que servirá de mediador entre o escritor da obra original e o espectador. O diretor, por sua vez, baseia sua visão em um roteiro que nem sempre foi escrito por ele e, além disso, depende da aprovação do(s) produtor(es). Essa perda de poder e a consequente necessidade de confiar na visão de outra(s) pessoa(s) (que está inserido em uma lógica que visa o lucro) causa incômodo e, por isso, é comum criticarmos filmes baseados em livros – aquele corte desnecessário, o personagem não era assim, o personagem “x” ganhou muito valor e por aí vai. Isso não quer dizer, no entanto, que não se possa encontrar adaptações dignas de respeito, mantendo a qualidade da história através de uma produção de qualidade. “O senhor dos anéis” era considerado impossível de ser filmado e Peter Jackson entregou três filmes de qualidade – sucesso de público e de crítica (mesmo sem ficar livre dos fãs mais puristas). “Me chame pelo seu nome”, livro de Andre Aciman recentemente adaptado para o cinema sob a direção de Luca Guadagnino, segue o mesmo caminho: uma obra cinematográfica de qualidade que soube respeitar suas bases literárias, um belo exemplar de tradução intersemiótica.
PARTE 2 – ME CHAME PELO SEU NOME (Call me by your name – EUA, 2007)
Autor: Andre Aciman
Elio é o foco narrativo do romance de Andre Aciman e, dito isto, torna-se importante manter em mente que “Me chame pelo seu nome” se dá sob o ponto de vista de alguém e que este alguém é Elio. Enquanto narrador, passa a sensação de um certo grau de amadurecimento capaz de revisitar as experiências que teve enquanto jovem. São vários os momentos em que o Elio narrador faz apontamentos sobre o comportamento de si próprio e das pessoas que o cercavam naquele verão no início da década de oitenta. Enquanto personagem, Elio é um adolescente de dezessete anos que, apesar de tentar manter uma postura de controle e conhecimento da vida, guarda em si – como qualquer rapaz da sua idade – inúmeros questionamentos e conflitos. Não à toa, as frases interrogativas permeiam toda a narrativa. Elio narrador e Elio personagem se mesclam desde o início do relato, fundindo-se em um terceiro Elio, este o nosso protagonista: aquele que transita entre o narrador amadurecido e o jovem em ebulição, aquele que busca, como diz a canção de Violeta Parra, decifrar seus próprios signos, voltando a ser, para isso, “tão frágil como um segundo”. “Me chame pelo seu nome” parte de uma entrega de seu narrador personagem, um relato sincero que expõe toda nossa fragilidade e as reações instintivas que assumimos (ou somos obrigados a assumir) para superá-la por intermédio da relação que temos conosco e com aqueles que nos cercam. Em entrevista para a Revista Cult, Aciman comenta que o romance “é sobre como examinamos a nós mesmos e a outras pessoas, e nós mesmos frente a outras pessoas. (…) É sobre ser e descobrir-se.”
“Me chame pelo seu nome” revisita a história do verão de 1983 na Riviera Italiana. Elio, então com dezessete anos, tem de deixar seu quarto por seis semanas, pois sua casa hospedará um jovem acadêmico, que, sob a condição de ajudar seu pai nos trabalhos e correspondências, tem a liberdade de produzir sua própria pesquisa; o convidado é Oliver, um americano de vinte e quatro anos cuja pesquisa gira em torno de Heráclito.
Desde o início da narrativa, a torrente de sentimentos que preenche Elio fica em evidência, impondo a ele um diálogo íntimo consigo que transita não só entre o eu e o outro, mas também entre o eu e os outros – ou ainda entre o nós e os outros e, acima de tudo, entre o eu e eu mesmo. Sentindo-se extremamente atraído pelo físico e pelo comportamento seguro de Oliver, Elio passa a caminhar entre o desejo de estar ao lado dele e o medo de ter seus sentimentos revelados (desde a forma como deve falar e se portar até a umidade constrangedora do gozo), levando-o a ações e a interpretações sobre cada manifestação do jovem americano – desde o “Até depois”, chegando a questionamentos sobre o porquê de Oliver tomar banho altas horas da madrugada ou o que ele faz quando está ausente. Perdido em sensações até então desconhecidas, Elio se expõe, apesar da sua resistência (e a vida tem dessas coisas), para um mundo sobre o qual ele acredita ter conhecimento. A exposição de Elio força a exposição de Oliver, revelando, assim, similaridades e compatibilidades que o primeiro não imaginava existirem. Oliver, apesar de ligeiramente mais velho, acaba demonstrando ter certezas, conflitos e dificuldades em expressá-los tanto quanto Elio, mas que se tornam secretos do ponto de vista do narrador personagem.
Uma das grandes qualidades de “Me chame pelo seu nome” está na sua capacidade de abordar a natureza humana com tamanha simplicidade e fluidez (fluidez, inclusive, é um conceito bem presente na obra, dialogando com Heráclito, tema da pesquisa de Oliver, quando a urgência do tempo torna-se um eixo importante para a tomada de decisões por parte dos personagens – o verão que poderia durar para sempre não durará eternamente, algo que impõe pensamentos ao protagonista do tipo: “se não depois, quando?”). Ao nos apresentar aos conflitos de Elio, conflitos que se estendem para além da figura do protagonista, envolvendo outros personagens (como não poderia deixar de ser, e o fato de o Elio narrador estar em posição mais amadurecida que a do Elio personagem possibilita um olhar mais sincero sobre os sentimentos dos outros, evitando, dessa forma, um ponto de vista estereotipado do adolescente que não consegue ir além dos seus próprios conflitos), Aciman acaba por nos oferecer um estudo comportamental que tem como base o amor: amor platônico, amor carnal, amor parental, amor de amigo. Ser um romance entre dois homens faz com que esse estudo ganhe uma conotação ainda mais profunda. Em trecho de sua entrevista à Revista Cult, Aciman, que é heterossexual, afirma:
Eu não queria aquelas típicas situações que sempre aparecem em livros sobre gays. Você sabe, a polícia atacando um casal gay, pessoas cruéis nas ruas batendo neles, alguém infectado com HIV. Eu não queria nada disso no meu romance. Eu queria imaginar: como seria a vida se um casal gay não tivesse de passar por nenhuma dessas coisas violentas e sem sentido? Veja, eu não dou nome à cidade em que a ação se passa, não descrevo rostos. E também não uso a palavra “gay” no livro. Quando você lê um livro assim, em que não há o lado de fora – ou que ele não importa tanto –, você é inevitavelmente confrontado com o interior dos personagens. Em “Me chame pelo seu nome”, você precisa olhar para dentro desses dois indivíduos que calharam de ser homens e que estão atraídos um pelo outro, mas sem perigos externos. E aí, o que acontece? É isso que eu queria explorar, e não toda a política, a perseguição, a condenação e a violência ao redor de uma relação assim.
A proeminência desse microcosmo representado pela casa de Elio, onde as manifestações humanas se dão de forma natural, despidas de preconceitos, expõe a simplicidade complexa das relações e afetos que somos chamados a construir. O fato de Aciman apresentar esses afetos de forma crua faz com que a identificação do leitor seja imediata, fazendo brotar a consciência de que as mazelas da sociedade são, muitas vezes, responsáveis por tornar ainda mais tortuosa uma estrada que deveria ser bem mais prazerosa de ser trilhada – o grande feito de “Me chame pelo seu nome” é, justamente, valorizar a importância dessa caminhada.
PARTE 3 – ME CHAME PELO SEU NOME (Call me by your name – Itália, EUA, Brasil e França, 2017)
Diretor: Luca Guadagnino
O grande desafio de se adaptar o livro de André Aciman estava na forma que roteiro e direção encontrariam para transferir o ponto de vista, que no romance está focado em Elio, para a câmera. A leitura de “Me chame pelo seu nome” nos aproxima de pensamentos e sensações de um jovem de dezessete anos – pensamentos e sensações que não são expressos abertamente pelo protagonista no decorrer da narrativa literária e que precisariam ser colocadas ao longo da narrativa fílmica sem soarem piegas nem tão discretas a ponto de sumirem; em ambos casos a adaptação correria o risco de trair sua origem.
Felizmente a dupla Luca Guadagnino e James Ivory, este mais que aquele, conseguiram traduzir a leveza erótica do romance para um filme delicado que aborda amor e afeto de forma poética sem jamais pender para o exagero – leia-se: pieguice. Ivory, roteirista veterano, opta por colocar na voz de Elio palavras pontuais e espontâneas que expressam seus sentimentos e, ao mesmo tempo, revelam a insegurança e, muitas vezes, a sua imaturidade (realçada por momentos em que, no intuito de se mostrar menos adolescente, acaba por expor, justamente, sua condição enquanto tal). Da mesma forma, os momentos de silêncio de Elio, explorados pela direção de Guadagnino (o último plano consegue transpor o expectador para o interior do protagonista, tornando difícil não se sentir apegado a Elio), assumem um papel fundamental para a obra e é neste ponto que se torna importantíssimo a entrega que Timothée Chalamet oferece em cena. Todo o desejo e todo o conflito de Elio emerge dos olhares, da respiração e da expressão corporal alcançadas pelo ator e, não à toa, ele se torna o grande destaque do filme. Já a escolha de Armie Hammer para dar corpo a Oliver demonstra muito sobre a estratégia da produção. Hammer é um ator de mais de trinta anos e Oliver, no romance, é um rapaz de vinte e quatro. No filme, entretanto, a idade de Oliver não é desvendada, diferentemente da idade de Elio (que em determinado momento brada: “eu tenho dezessete!”), abrindo espaço para que o espectador possa oferecer a idade que considere mais adequada para o americano, mesmo que seja difícil encontrar um homem de vinte e quatro anos por trás da atuação de Hammer. O fato é que a opção por ele expõe a clara decisão da produção em abrir a possibilidade de enxergarmos uma relação entre pessoas com uma diferença maior de idade que aquela proposta pelo romance. O elenco conta, ainda, com uma atuação inspirada de Michael Stuhlbarg. A sua presença traduz fator importante do romance: a opção por tratar do amor entre dois homens sem a violência que permeia tais narrativas (a ausência de homofobia, tal como no livro, abre espaço para entrarmos em contato mais íntimo com o interior dos personagens). Stuhlbarg, ao encarnar o pai de Elio, oferece leveza a um personagem que de forma compreensiva permite ao filho vivenciar experiências profundas de descoberta por meio do afeto, culminando em um dos diálogos mais bonitos da cinematografia recente.

Guadagnino, por outro lado, comete um deslize que considero a única crítica negativa ao filme. O tratamento que a sua câmera dá aos momentos sexuais de Elio com Marzia diferem do tratamento oferecido àqueles entre Elio e Oliver – “fugir” para a janela, definitivamente, não é a melhor opção quando se trata do casal protagonista do filme. “Me chame pelo seu nome”, no entanto, consegue consolidar-se enquanto obra cinematográfica sem perder a aura que envolve o romance de Aciman ao abordar o amor como um sentimento universal e o valor do afeto para a construção de nós mesmos.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

“A GHOST STORY” / “VIVA: A VIDA É UMA FESTA” (A GHOST STORY / COCO – EUA, 2017)


A dimensão da memória é, juntamente à dimensão do tempo – com a qual guarda profunda intimidade –, um dos mistérios mais complexos com que temos de conviver. A memória é uma construção, seja em caráter individual ou social, e, portanto, assumimos responsabilidade sobre ela. O que lembramos ou deixamos de lembrar, no entanto, é obviamente influenciado não somente pelas escolhas que realizamos em vida, mas também pela (e, até mesmo, em função da) importância que determinado alguém ou determinada coisa exerce em nós. Dessa forma, na construção da memória, realçamos / valorizamos pessoas e episódios em detrimento de outros que, por sua vez, são recalcados – fator que indica o grau de responsabilidade consciente ou inconsciente que desempenhamos sobre esse processo. Por isso, ao esquecermos de algo ou de alguém, somos tomados por um sentimento de culpa, pois reconhecemos que somos responsáveis por nossas lembranças. Muito além disso, o reconhecimento de tal processo nos impõe uma realidade bem ameaçadora, pois tomamos consciência de que, assim como podemos esquecer, sempre haverá a possibilidade de sermos esquecidos. Este círculo, esquecer / ser esquecido, pode se tornar vicioso e, não poucas vezes, testemunhamos ou vivenciamos situações em que, no intuito de temer o esquecimento (seu ou do outro), vemo-nos estagnados em um processo deveras prejudicial.

Na contramão deste, está o antônimo de esquecer: lembrar. Se em um olhar metafórico o ato de esquecer assemelha-se ao fechar de uma porta, lembrar é a ação diametralmente oposta e, mesmo quando a lembrança não se refere a um alguém ou a alguma coisa boa, reconhecemos no ato de lembrar um passo importante para o futuro; da mesma forma que lembramos no intuito repetir, lembramos para evitar. Não à toa, ao lembrarmos de alguém ou ao sermos lembrados por alguém, somos, usualmente, tomados por um sentimento de alegria e satisfação – constatamos, também aqui, a responsabilidade que temos no processo, pois tomamos consciência de que realizamos algo marcante para alguém ou fomos marcados por outros que se tornam, por isso, especiais. Deve-se, no entanto, admitir que, muitas vezes, o processo de lembrar / ser lembrado pode, também, tornar-se um círculo vicioso, incidindo em sentimentos e atitudes prejudiciais para si e para os outros.
A responsabilidade, entretanto, é uma incumbência que assumimos quando vivos. É, portanto, uma tarefa de tempo limitado para além do qual perdemos qualquer influência. Essa condição é angustiante e se temos medo de sermos esquecidos, se temos a intenção de sermos lembrados e sabemos que o prazo para tal não é infinito, buscamos realizar em vida todo o possível para que nossa memória ou a memória de alguém especial perdure.
O ano de 2017 teve a especificidade de lançar nos cinemas dois filmes que tocam, cada um à sua maneira, nessas questões. Refiro-me a A Ghost Story (direção: David Lowery) e Viva: a vida é uma festa (direção: Lee Unkrich e Adrian Molina). O primeiro, a angustiante e solitária travessia de um fantasma pelo tempo e pelo consequente desvanecimento de tudo aquilo que lhe dava sentido quando vivo e o segundo, uma tocante aventura sobre um menino que, transportado ao mundo dos mortos, busca encontrar o tataravô que a família insiste em esquecer. São, portanto, dois filmes que tratam da memória pós-morte. As intenções são, claramente, distintas e, em função disso, a direção opta por estéticas bem diferentes.
Viva: a vida é uma festa é uma animação que aposta nas cores e nas músicas (esta, um elemento fundamental para as motivações do protagonista) a fim de criar um mundo dos mortos convidativo e aprazível, pois é uma história contada a partir do ponto de vista de uma criança – inserida em uma cultura que tem, por tradição, o costume de celebrar os mortos – e realizado para crianças (mas não apenas elas). A ghost story também possui na música um elemento importante, uma vez que o protagonista trabalha com isso. Sua estética, no entanto, aposta em sonoridades mais doídas que refletem a melancolia que domina o personagem. No filme de Lowery, as cores se limitam a tons monocromáticos que indicam a perda gradativa de referências cuja existência dava sentido ao personagem principal. Em ambos os filmes, a expressão dos protagonistas gera empatia junto ao espectador: se Miguel encanta com seus olhares e sua covinha que aparece em apenas uma bochecha, C (identidade do protagonista de A ghost story), mesmo sendo um lençol com furos no lugar dos olhos, possui uma profunda expressividade, pois o formato dos furos indica um olhar tristonho e cansado. São expressões que evocam a condição de cada personagem – Miguel sai em busca de algo, C está preso a algo; Miguel luta pela lembrança, C luta contra o esquecimento. A busca de Miguel desemboca na possibilidade de receber quem partiu em nosso mundo, a busca de C desemboca em libertar-se deste mundo. Em Viva, a finitude do tempo é fundamental para Miguel agir. Em A ghost story, a infinita dimensão do tempo é fundamental para C agir. No filme de Unkrich e Molina, o retorno eterno é algo a ser celebrado. No filme de Lowery, o eterno retorno é algo aterrorizante. Isso se dá, justamente, porque Viva: a vida é uma festa está mais próximo do conceito de lembrar / ser lembrado e A ghost story aproxima-se do conceito de esquecer / ser esquecido. As reflexões e sentimentos alimentados pelos dois são, embora distintos, igualmente relevantes.
Em determinado momento de A ghost story, transportei-me para o exato momento em que fechei a porta do apartamento onde vivi boa parte de minha vida para não mais voltar. Tendo vendido o imóvel, ele não poderia mais ser chamado de meu e fui tomado pela terrível sensação de que todas aquelas lembranças ali vividas perder-se-iam para sempre. Alguns meses depois, a convite da nova proprietária e pela necessidade de pegar um documento, retornei ao apartamento. Ao entrar, me deparei com um espaço totalmente modificado e, após sentar-me na poltrona, fui surpreendido pela pergunta da nova proprietária: “reconhece sua casa?”. Muito mais que uma simples brincadeira entre pessoas que se conectam pela venda / compra de um imóvel, a pergunta dela guarda a consciência inconsciente de que, não importa o tempo que passe nem quantas pessoas serão proprietárias daquele apartamento, as lembranças ali construídas jamais poderão ser apagadas, pois estarão guardadas não apenas na minha memória ou na daqueles com quem ali dividi momentos, mas também na infinita dimensão do tempo, podendo vir, numa acepção filosófica, a repetir-se eternamente. Tal condição é, ao mesmo tempo, consoladora e angustiante, pois, enquanto expõe a responsabilidade que assumimos sobre o que fica e o que se perde neste círculo temporal, garante a nós uma lição fundamental: a importância de aprendermos a deixar as coisas irem, admitindo, com isso, que elas assumem o protagonismo necessário para nossas vidas e que podemos retornar a elas pelo poder da memória. A melancolia e angústia de C encontra-se, justamente no fato de que, morto, é incapaz de interferir no processo de transformação do mundo que costumava habitar e, em vez de permitir que as coisas aconteçam, acaba preso a uma dor sem fim.
Ao assistir Viva: a vida é uma festa, recordei outro momento de minha experiência. Alguns anos atrás, passando de ônibus por uma rua, vi um cartaz anunciando um show – não me recordo qual artista – que ocorreria no dia 17 de janeiro daquele ano. De fato o artista não foi, em momento algum, importante para mim, pois ao ler a data do show – data esta que chegaria em poucos dias – fui tomado de ímpeto pela lembrança de que, naquele dia, seria comemorado o aniversário de minha avó caso ela estivesse viva. Fui tomado, imediatamente, por um sentimento de culpa; era imperdoável esquecer o aniversário de alguém tão importante em minha vida e isso fatalmente aconteceria caso não passasse por aquele cartaz naquele dia. Daquele momento em diante, lembrar da minha avó e de todos aqueles que partiram tornou-se um exercício não apenas de respeito, mas principalmente de afeto. Miguel, a criança viva transportada para o mundo dos mortos, busca justamente resgatar o afeto há tanto perdido entre seus entes queridos e faz isso no intuito de combater o grande vilão deste filme da Pixar: o esquecimento. Em determinado momento de Viva, um personagem encontra o fatídico destino daqueles que são esquecidos pelos vivos e a belíssima estratégia utilizada pelos animadores, apesar de não excluir totalmente, ao menos, oferece um rico ar de eufemismo àquela situação ameaçadora. Falo sobre esta passagem do filme, pois A ghost story elabora uma situação semelhante – muito mais crua, apesar de, neste caso, causar alívio, uma vez que representa a libertação daqueles personagens.

Dois protagonistas: um é criança, o outro adulto – um vivo no mundo dos mortos, outro morto no mundo dos vivos. Ambos imersos em um mundo de lembranças e esquecimentos. Esta seja, talvez, a maior virtude da arte: duas obras distintas que se aproximam pelos sentimentos que evocam, cada uma com suas intenções e estratégias estéticas. Ambas me tocaram e, muito por isso, busquei colocá-las em diálogo, abrindo espaço para reflexões mais profundas, esta, sem dúvida, a maior virtude da arte.