PARTE 1 – TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA
Ilustração: Bianca Bagnarelli (FONTE: The New Yorker) |
Durante muito tempo, no Brasil, as novelas e filmes eram, quase
exclusivamente, baseados em romances famosos; foi muito comum também
as novelas baseadas em radionovelas de sucesso no período
pré-televisão. O cinema tomar emprestado da literatura suas
narrativas não é novidade e é um fato que permeia a história da
sétima arte desde o início da linguagem narrativa clássica e não
são poucos os filmes de sucesso baseados em livros. O audiovisual
por si só já poderia ser considerado um exemplo de tradução
intersemiótica pela própria natureza, já que sua estrutura,
enquanto linguagem, baseia-se justamente na transposição de
palavras escritas de um roteiro para imagens em movimento recheadas
de diálogos, músicas, cenários, figurinos, maquiagens,
técnicas de iluminação...
Como dito anteriormente, uma boa tradução intersemiótica deve
respeitar e, por isso mesmo, explorar as particularidades e
similaridades de cada um dos sistemas semióticos em diálogo. É,
portanto, comum a necessidade de valorizar e/ou de abrir mão de
alguns detalhes a fim de se alcançar o objetivo da obra. No caso de
um filme baseado em um livro, não se deve esquecer que as visões de escritor e diretor não serão as mesmas, mesmo que se
espere o máximo de respeito entre as duas. Ademais, partindo do
pressuposto que são inúmeras as visões sobre uma obra, é normal
que se tenha preferência por uma delas. Certamente você já ouviu
alguém ou se pegou dizendo que, comparando livro e filme, o livro é
melhor. Isso se dá muito em função da natureza dessas linguagens e
da relação que construímos com ela.
A literatura é uma linguagem quase que exclusivamente verbal (falo "quase", pois devemos ter consciência de que algumas narrativas são
acompanhadas de ilustrações – é impossível separar “O Pequeno
Príncipe” das suas ilustrações – ou, até mesmo, de trilhas
sonoras para serem ouvidas durante a leitura) e a relação que temos
ao pegar um livro nas mãos e folhear suas páginas é normalmente
pautada pela solidão. Mesmo quando lemos uma história em meio a uma
multidão – seja naquela leitura no ônibus, no metrô, no parque,
na biblioteca ou na movimentada sala de casa – somos tomados por um
estado de transe como se estivéssemos suspensos da realidade e
imersos no espaço-tempo da narrativa; não alcançar este estado
meditativo torna a leitura pouco prazerosa e pouco eficaz. O escritor
italiano Italo Calvino, logo ao iniciar sua obra “Se um viajante
numa noite de inverno”, avisa:
“Afaste todos os outros
pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido.
É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor
ligado. Diga logo aos outros: 'Não, não quero ver televisão!'. Se
não ouvirem, levante a voz: 'Estou lendo! Não quero ser
perturbado!'. (…) Regule a luz para que ela não lhe canse a vista.
Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá
meio de mover-se.”
Essa possibilidade de imersão somada a abrangência das palavras no
decorrer do processo codificação / decodificação abre espaço
para a construção de um mundo muito particular, aproximando em
graus diversos as visões do autor e do leitor. Quando um escritor,
ao descrever determinado personagem, indica que ele tem cabelos
castanhos, pele morena e olhos da cor das águas do rio “tal”, a
imagem que farei deste personagem não será igual àquela que outros
leitores farão e tampouco será igual à visão do autor. O grau de
aproximação poderá variar se eu conhecer ou não o rio “tal”,
mas, mesmo que eu me aproxime da visão do autor, certamente não
serei capaz de construir a imagem desse personagem exatamente como o
autor a concebeu, mas tal fato não me impede de “mergulhar na
leitura” e tirar dela seus prazeres e angústias. Uma das grandes
características da literatura é justamente essa capacidade de abrir
espaço para incontáveis imagens que se possa fazer a partir das
palavras escolhidas pelo autor. Ao abrirmos um livro somos dotados de
um poder que não possuímos ao assistirmos a um filme e por quê?
Ao assistirmos a uma versão cinematográfica de um livro, abrimos
mão desse poder de criar as imagens a partir da nossa leitura
pessoal da obra literária. Esse poder fica nas mãos do diretor da
obra cinematográfica que servirá de mediador entre o escritor da
obra original e o espectador. O diretor, por sua vez, baseia sua
visão em um roteiro que nem sempre foi escrito por ele e, além
disso, depende da aprovação do(s) produtor(es). Essa perda de poder
e a consequente necessidade de confiar na visão de outra(s)
pessoa(s) (que está inserido em uma lógica que visa o lucro) causa
incômodo e, por isso, é comum criticarmos filmes baseados em livros
– aquele corte desnecessário, o personagem não era assim, o
personagem “x” ganhou muito valor e por aí vai. Isso não quer
dizer, no entanto, que não se possa encontrar adaptações dignas de
respeito, mantendo a qualidade da história através de uma produção
de qualidade. “O senhor dos anéis”
era considerado impossível de ser filmado e Peter Jackson entregou
três filmes de qualidade – sucesso de público e de crítica
(mesmo sem ficar livre dos fãs mais puristas). “Me chame
pelo seu nome”, livro de Andre
Aciman recentemente adaptado para o cinema sob a direção de Luca
Guadagnino, segue o mesmo caminho: uma obra cinematográfica de
qualidade que soube respeitar suas bases literárias, um belo
exemplar de tradução intersemiótica.
PARTE 2 – ME CHAME PELO SEU NOME (Call me by your name – EUA,
2007)
Autor:
Andre Aciman
Elio
é o foco narrativo do romance de Andre Aciman e,
dito isto, torna-se importante manter em mente que “Me
chame pelo seu nome”
se dá sob o ponto de vista de alguém e que este alguém é Elio.
Enquanto narrador, passa a sensação de um
certo
grau de amadurecimento capaz de revisitar as experiências que teve
enquanto jovem. São vários os momentos em que o Elio narrador faz
apontamentos sobre o comportamento de si próprio e das pessoas que o
cercavam naquele verão no início da década de oitenta. Enquanto personagem, Elio é um
adolescente de dezessete anos que, apesar de tentar
manter uma postura de controle e conhecimento da vida, guarda em si –
como qualquer rapaz da sua idade – inúmeros questionamentos e
conflitos. Não à toa, as frases interrogativas permeiam toda a
narrativa. Elio narrador e Elio personagem se mesclam desde o início
do relato, fundindo-se em um terceiro Elio, este o nosso
protagonista: aquele que transita entre o narrador amadurecido e o
jovem em ebulição, aquele que busca, como
diz a canção de Violeta Parra,
decifrar seus próprios signos, voltando a ser, para isso, “tão
frágil como um segundo”. “Me
chame pelo seu nome”
parte de uma entrega de seu narrador personagem, um relato sincero
que expõe toda nossa fragilidade e as reações instintivas que
assumimos (ou
somos obrigados a assumir) para
superá-la por intermédio da relação que
temos
conosco e com aqueles que nos cercam. Em entrevista para a Revista
Cult, Aciman
comenta que o romance “é sobre como examinamos a nós mesmos e a
outras pessoas, e nós mesmos frente a outras pessoas. (…) É sobre
ser e descobrir-se.”
“Me
chame pelo seu nome”
revisita
a história
do
verão de
1983
na Riviera Italiana. Elio,
então com dezessete anos, tem de deixar seu quarto por seis semanas,
pois
sua casa hospedará um jovem acadêmico, que, sob a condição de
ajudar seu
pai nos
trabalhos e correspondências, tem a liberdade de produzir sua
própria pesquisa; o
convidado é Oliver, um americano de vinte e quatro anos cuja
pesquisa gira em torno de Heráclito.
Desde
o início da narrativa, a torrente de sentimentos que preenche Elio
fica em evidência, impondo a
ele um diálogo íntimo
consigo que transita
não só entre o eu e o outro, mas também entre o eu e os outros –
ou ainda entre o nós e os outros e,
acima de tudo, entre o eu e eu mesmo.
Sentindo-se extremamente atraído pelo físico e pelo comportamento
seguro de Oliver, Elio passa a caminhar
entre o desejo de estar ao lado dele e o medo de ter seus sentimentos
revelados (desde a forma como
deve falar e se portar até a umidade constrangedora do gozo),
levando-o a ações e a interpretações sobre cada manifestação do
jovem americano – desde o
“Até depois”,
chegando a
questionamentos sobre o porquê de
Oliver
tomar banho altas horas da
madrugada ou o que ele faz
quando está ausente. Perdido
em sensações até então desconhecidas, Elio se expõe, apesar da
sua resistência (e a vida tem dessas coisas), para um mundo sobre o
qual ele acredita ter conhecimento. A
exposição de Elio força a exposição de Oliver, revelando,
assim,
similaridades e compatibilidades que o primeiro não imaginava
existirem. Oliver, apesar de ligeiramente mais velho, acaba
demonstrando ter certezas, conflitos e dificuldades
em expressá-los tanto quanto
Elio, mas que se tornam secretos do
ponto de vista do narrador personagem.
Uma das grandes qualidades de “Me
chame pelo seu nome” está na
sua capacidade de abordar a natureza humana com tamanha simplicidade
e fluidez (fluidez,
inclusive, é um conceito bem presente na obra, dialogando com Heráclito, tema da pesquisa de Oliver, quando a urgência do tempo torna-se um eixo
importante para a tomada de decisões por parte dos personagens – o
verão que poderia durar para sempre não durará eternamente, algo
que impõe pensamentos ao protagonista do tipo: “se não
depois, quando?”).
Ao nos apresentar aos conflitos de Elio, conflitos que se estendem
para além da figura do protagonista, envolvendo outros personagens
(como não poderia deixar de
ser, e o fato de o Elio narrador estar em posição mais amadurecida
que a do Elio personagem possibilita um olhar mais sincero sobre os
sentimentos dos outros, evitando, dessa forma, um ponto de vista
estereotipado do adolescente que não consegue ir além dos seus
próprios conflitos), Aciman
acaba por nos oferecer um estudo comportamental que
tem como base o amor: amor
platônico, amor carnal, amor parental, amor de amigo. Ser um romance
entre dois homens faz com que esse estudo ganhe uma
conotação ainda mais
profunda. Em trecho de sua
entrevista à Revista Cult, Aciman, que é heterossexual, afirma:
Eu
não queria aquelas típicas situações que sempre aparecem em
livros sobre gays. Você sabe, a polícia atacando um casal gay,
pessoas cruéis nas ruas batendo neles, alguém infectado com HIV. Eu
não queria nada disso no meu romance. Eu queria imaginar: como seria
a vida se um casal gay não tivesse de passar por nenhuma dessas
coisas violentas e sem sentido? Veja, eu não dou nome à cidade em
que a ação se passa, não descrevo rostos. E também não uso a
palavra “gay” no livro. Quando você lê um livro assim, em que
não há o lado de fora – ou que ele não importa tanto –, você
é inevitavelmente confrontado com o interior dos personagens. Em “Me
chame pelo seu nome”, você
precisa olhar para dentro desses dois indivíduos que calharam de ser
homens e que estão atraídos um pelo outro, mas sem perigos
externos. E aí, o que acontece? É isso que eu queria explorar, e
não toda a política, a perseguição, a condenação e a violência
ao redor de uma relação assim.
A
proeminência desse microcosmo representado pela casa de Elio,
onde as manifestações
humanas se dão de forma natural, despidas
de preconceitos, expõe a
simplicidade
complexa
das relações e afetos que somos chamados a construir. O fato de
Aciman apresentar esses
afetos de forma crua faz com
que a identificação do leitor seja imediata, fazendo brotar a
consciência de que as mazelas da sociedade são, muitas vezes,
responsáveis por tornar ainda mais tortuosa uma estrada que deveria
ser bem mais prazerosa de ser trilhada – o
grande feito de “Me chame pelo seu nome”
é, justamente,
valorizar a importância dessa caminhada.
O grande desafio de se adaptar o livro de André Aciman estava na
forma que roteiro e direção encontrariam para transferir o ponto de
vista, que no romance está focado em Elio, para a câmera. A leitura
de “Me chame pelo seu nome”
nos aproxima
de pensamentos e sensações de um jovem de dezessete anos –
pensamentos e sensações que não são expressos abertamente pelo
protagonista no decorrer da narrativa literária e que precisariam
ser colocadas ao longo da narrativa fílmica sem soarem
piegas nem tão discretas a
ponto de sumirem; em ambos casos a adaptação correria o risco de
trair sua origem.
PARTE 3 – ME CHAME PELO SEU NOME (Call me by your name –
Itália, EUA, Brasil e França, 2017)
Diretor:
Luca Guadagnino
Felizmente a dupla Luca Guadagnino
e James Ivory, este mais que aquele, conseguiram traduzir a leveza
erótica do romance para um filme delicado que aborda amor e afeto de
forma poética sem jamais pender para o exagero – leia-se:
pieguice. Ivory, roteirista veterano, opta por colocar na voz de Elio
palavras pontuais e espontâneas que expressam seus sentimentos e, ao
mesmo tempo, revelam a insegurança e, muitas vezes, a sua
imaturidade (realçada por
momentos em que, no intuito de se mostrar menos adolescente, acaba
por expor, justamente, sua condição enquanto tal).
Da mesma forma,
os momentos de silêncio de
Elio, explorados pela direção
de Guadagnino (o último
plano consegue transpor o expectador para o interior do protagonista,
tornando difícil não se sentir apegado a Elio),
assumem um papel fundamental para a
obra e é neste ponto que se torna importantíssimo a entrega que
Timothée Chalamet oferece em cena. Todo o desejo e todo o conflito
de Elio emerge dos olhares, da respiração e da expressão corporal
alcançadas pelo ator e, não à toa, ele se torna o grande
destaque do filme. Já a
escolha de Armie Hammer para dar corpo a Oliver demonstra
muito sobre a estratégia da produção. Hammer é um ator de mais de
trinta anos e Oliver, no romance, é um rapaz de vinte e quatro. No
filme, entretanto, a idade de Oliver não é desvendada,
diferentemente da idade de Elio (que em determinado momento brada:
“eu tenho dezessete!”),
abrindo espaço para que o espectador possa oferecer a idade que
considere mais adequada para o americano, mesmo
que seja difícil encontrar um homem de vinte e quatro anos por trás
da atuação de Hammer. O
fato é que a opção por ele
expõe a clara decisão da
produção em abrir a
possibilidade de enxergarmos uma relação entre pessoas com uma
diferença maior de idade que aquela proposta pelo romance. O elenco
conta, ainda, com uma atuação inspirada de Michael Stuhlbarg. A sua
presença traduz fator importante do romance: a opção por tratar do
amor entre dois homens sem a violência que permeia tais narrativas
(a ausência de homofobia, tal como no livro, abre espaço para
entrarmos em contato mais íntimo com o interior dos personagens).
Stuhlbarg, ao encarnar o pai de Elio, oferece leveza a um personagem
que de forma compreensiva
permite ao filho vivenciar experiências profundas de descoberta por
meio do afeto, culminando em um dos diálogos mais bonitos da
cinematografia recente.
Guadagnino, por outro lado, comete
um deslize que considero a única crítica negativa ao filme. O
tratamento que a sua câmera dá aos momentos sexuais de Elio com
Marzia diferem do tratamento oferecido àqueles entre Elio e Oliver –
“fugir”
para a janela, definitivamente, não é a melhor opção quando se
trata do casal protagonista do filme.
“Me chame pelo seu nome”,
no entanto, consegue consolidar-se enquanto obra cinematográfica sem
perder a aura que envolve o romance de Aciman ao
abordar o amor como um sentimento universal e o valor do afeto para a
construção de nós mesmos.
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