sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A FORMA DA ÁGUA (The shape of water – EUA, 2017)


Direção: Guillermo del Toro
Estrangeiro”, segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Antenor Nascentes, tem origem no francês “étranger”, que, por sua vez, origina-se do termo latino “extraneariu”, o qual significa “estranho”. O cinema de Guillermo del Toro é, como diz o próprio, “uma celebração do estranho” – dos vários estranhos que moldam as relações humanas. Em tempos de exacerbação dos discursos de ódio e da consequente e alarmante polarização entre um “nós” mais e mais individualista e um “eles” com os quais se quer o mínimo contato, o mais recente trabalho do cineasta mexicano emerge simbolicamente como uma resposta a essas tendências sociopolíticas que moldam os dias atuais.
“A forma da água” é um filme sobre estrangeiros, figuras que se encontram em um mundo hostil às suas particularidades, que, impedidas de se expressarem (não por acaso Elisa Esposito, a protagonista, é muda), buscam se identificar através dos afetos. Del Toro, em parceria com sua corroteirista Vanessa Taylor, consegue explorar esses estranhos tão comuns na chamada pós-modernidade: a hispânica, a muda, a negra (e utilizo o feminino justamente pela importância de se incluir a mulher nesta lista), o homossexual, em suma, o diferente. Não se deve esquecer que a condição de estranho se dá justamente em consequência da tomada de voz por parte dessas identidades e da descabida reação de grupos conservadores em busca da manutenção da ordem e dos ditos bons costumes por intermédio de tentativas de silenciar essas vozes. A disputa se dá, portanto, dentre outros níveis, no nível da comunicação e o filme é eficaz em abordar essa questão tão atual.
É brilhante observar como Elisa (Sally Hawkins), apesar de muda, consegue se comunicar tão naturalmente com sua colega de trabalho Zelda (Octavia Spencer) – negra e tratada como objeto por seu marido – e com seu vizinho Giles (Richard Jenkins) – homossexual, apaixonado por um rapaz bem mais novo e desempregado, muito provavelmente, por conta de sua orientação sexual –, uma vez que eles, abertos a essa comunicação, dominam os signos linguísticos que Elisa utiliza. O agente do governo Richard (e não à toa ele é homem, branco, heterossexual e cegamente cristão – basta reparar na forma como ele fala sobre Deus), por sua vez, é incapaz de se comunicar com qualquer pessoa a sua volta, limitando-se a ditar regras, expor seu poder (geralmente com violência) ou regurgitar filosofias machistas e não surpreende que, em determinado momento, ele exija de sua esposa que ela faça silêncio apesar dela demonstrar preocupação com seu estado físico. O elemento que (des)une esses polos é uma criatura anfíbia que, capturada na floresta amazônica, é levada, por Richard (Michael Shannon), para o laboratório onde Elisa e Zelda trabalham como faxineiras.
Inserido em um ambiente diferente daquele em que se desenvolveu, a criatura – chamada comumente de Forma – reúne em si toda a condição do estrangeiro: estranho, incapaz de se comunicar (por falta de ter quem queira se comunicar) e de viver livremente, hostilizado e depreciado. A identificação de Elisa não poderia ser diferente; ela mesma sente-se uma estranha em meio àqueles que a cercam: orfã, hispânica, tentando se adequar a um sonho e, talvez por isso, habitando um apartamento o qual fica em cima de um cinema e arriscando passos de dança como uma estrela de musical (uma delicadeza à parte, consolidando uma declaração de amor de Del Toro para a Sétima Arte). Ela se reconhece naquela figura anfíbia, com quem inicia um processo de comunicação retribuído pela forma como a criatura busca compreender os signos linguísticos utilizados por Elisa, e reconhece que o olhar que lhe é lançado chega despido dos preconceitos tão recorrentes entre os humanos e vale ressaltar a beleza com a qual ela corresponde à chamada desse afeto. São esses fatores que possibilitam às duas figuras vivenciarem sem medo uma história de amor sincera - sem puritanismos, sem a necessidade de projetarem uma imagem de si diferente daquilo que são.

A forma da água” é um conto de fadas no qual todas as peças estão cuidadosamente colocadas em seus lugares de tal maneira que a interação entre elas não poderia se dar de forma mais natural. Para isso, Del Toro conta com um elenco afinado e um belo design de produção cujo papel é fundamental para lançar um olhar profundo para o passado a fim de discorrer de forma poética sobre questões tão presentes em nosso dia a dia.

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