Direção: Guillermo del Toro
“Estrangeiro”,
segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Antenor
Nascentes, tem origem no francês “étranger”,
que, por sua vez, origina-se do termo latino “extraneariu”,
o qual significa “estranho”.
O cinema de
Guillermo del Toro é, como diz o próprio, “uma celebração do
estranho” – dos vários estranhos que moldam as relações
humanas. Em tempos de exacerbação dos discursos de ódio e da
consequente e alarmante polarização entre um “nós”
mais e mais individualista e um “eles”
com os quais se quer o mínimo
contato, o mais recente
trabalho do cineasta mexicano emerge simbolicamente como uma resposta
a essas
tendências sociopolíticas que moldam os dias atuais.
“A forma da água”
é um filme sobre estrangeiros, figuras que se encontram em um mundo
hostil às suas particularidades, que, impedidas de se expressarem
(não por acaso Elisa
Esposito, a protagonista, é
muda), buscam se identificar através
dos afetos. Del
Toro, em parceria com sua corroteirista Vanessa Taylor, consegue
explorar esses estranhos tão comuns na chamada pós-modernidade: a
hispânica,
a muda, a negra (e utilizo o feminino justamente pela importância
de se incluir
a mulher nesta lista), o homossexual, em suma, o diferente. Não
se deve esquecer que a
condição de estranho se dá justamente em consequência da tomada
de voz por parte dessas identidades e da descabida reação de grupos
conservadores em busca da manutenção da ordem e dos ditos bons
costumes por intermédio
de tentativas de silenciar
essas vozes.
A disputa se dá, portanto,
dentre outros níveis, no nível da comunicação e
o filme é eficaz em abordar
essa
questão tão atual.
É
brilhante observar como Elisa (Sally Hawkins), apesar de muda,
consegue se comunicar tão
naturalmente com sua colega
de trabalho Zelda (Octavia Spencer) – negra
e tratada como objeto por seu marido –
e com seu vizinho Giles (Richard Jenkins) – homossexual,
apaixonado por um rapaz bem
mais novo e desempregado,
muito provavelmente, por conta de
sua orientação sexual –,
uma vez que eles, abertos a
essa comunicação, dominam os signos linguísticos que Elisa
utiliza. O
agente do governo Richard (e
não à toa ele é homem,
branco, heterossexual e cegamente cristão – basta reparar na forma
como ele fala sobre Deus),
por sua vez,
é incapaz de se comunicar com qualquer pessoa a sua volta,
limitando-se a ditar regras, expor seu poder (geralmente
com violência) ou regurgitar
filosofias machistas e não surpreende que, em determinado momento,
ele exija de sua esposa que ela faça silêncio apesar dela
demonstrar preocupação com seu estado físico. O
elemento que (des)une esses polos é uma criatura anfíbia que,
capturada na floresta amazônica, é levada, por Richard (Michael Shannon), para o
laboratório onde Elisa e Zelda trabalham como faxineiras.
Inserido
em um ambiente diferente daquele em que se
desenvolveu, a criatura –
chamada comumente de Forma – reúne
em si toda a condição do estrangeiro: estranho, incapaz de se
comunicar (por falta de ter
quem queira se comunicar)
e de viver livremente,
hostilizado e depreciado. A
identificação de Elisa não poderia ser diferente; ela
mesma sente-se uma estranha
em meio àqueles que a cercam:
orfã, hispânica, tentando
se adequar a um
sonho e,
talvez por isso, habitando um apartamento o qual fica em cima de um
cinema e arriscando passos de dança como uma estrela de musical (uma delicadeza à parte, consolidando uma declaração de amor de Del Toro para a Sétima Arte).
Ela se reconhece naquela figura anfíbia,
com quem inicia um processo de comunicação retribuído pela forma
como a criatura busca compreender os signos linguísticos utilizados
por Elisa, e reconhece que o olhar que lhe é lançado chega despido
dos
preconceitos tão recorrentes entre os humanos e vale ressaltar a beleza com a qual ela corresponde à chamada desse afeto. São esses fatores que
possibilitam às duas figuras vivenciarem sem medo uma história de
amor sincera - sem puritanismos, sem a necessidade de projetarem uma imagem de si diferente daquilo que são.
“A forma da
água” é um conto de fadas no qual
todas as peças estão cuidadosamente colocadas em seus lugares de
tal maneira que a interação entre elas não poderia se dar de forma
mais natural. Para isso, Del Toro conta com um elenco afinado e
um belo design de produção cujo papel é fundamental para lançar
um olhar profundo para o passado a fim de discorrer de forma poética sobre
questões tão
presentes
em nosso dia a dia.
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