sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

TRAMA FANTASMA (Phantom Thread – EUA, 2017)


Direção: Paul Thomas Anderson
Não deve ser fácil dividir a cena com Daniel Day-Lewis. O ator britânico, reconhecido por sua completa entrega aos personagens que dá vida, é, sem sombra de dúvida, um dos melhores atores em atividade - algo que, por si só, já impõe muita responsabilidade a quem com ele contracena. O recente anúncio de sua aposentadoria é um duro golpe aos amantes das artes dramáticas e, se de fato cumprir sua decisão, Day-Lewis, ao menos, para no auge, entregando um personagem multidimensional em mais uma bela parceria com o diretor Paul Thomas Anderson (a primeira – não me canso de elogiar – ocorreu em 2007 com “Sangue Negro”). Ao falar sobre aquele filme, já refletia sobre a importância de se ter coadjuvantes à altura dos embates travados pelo protagonista (sejam eles internos ou externos): lá, a responsabilidade caiu sobre o jovem Paul Dano e neste “Trama Fantasma”, a incumbência cabe a também jovem Vicky Krieps e a Leslie Manville. Não preciso afirmar que o bom resultado da narrativa depende da cumplicidade desse trio – mérito não apenas do trabalho de concepção dos personagens por parte dos atores, mas também da direção segura de Anderson, conhecido por criar narrativas (os roteiros são de sua autoria) recheadas de personagens complexos (vide Boogie Nights, Magnólia, O mestre).
Assim como no título original de Sangue Negro (“There will be blood” – algo como “haverá sangue” –, que funciona quase como um aviso a espectadores sobre a natureza crua da história de Daniel Plainview), “Trama fantasma” guarda muito em seu título e, desta vez, a tradução foi bem mais fiel ao título em inglês, o qual toma, por empréstimo, um signo linguístico pertencente ao campo semântico da moda (ambiente onde a narrativa se desenrola). A palavra “trama” refere-se a fios condutores interligados, formadores de uma rede – aquilo que foi tecido. É, portanto, um elemento que molda e  que, acompanhado pelo substantivo adjetivado “fantasma”, diz muito sobre o protagonista Reynolds Woodcock.
Mergulhado em um complexo de Édipo, Woodcock vive sob a sombra de sua mãe morta, seja nas lembranças que insiste em verbalizar, no trabalho que realiza obsessivamente (em certo momento ele diz: “ela me ensinou meu ofício”) ou nas escolhas que toma em sua vida pessoal – a ausência de um casamento e a dependência emocional em relação à irmã, alçada ao lugar de figura materna e de quem Reynolds necessita para mediar suas relações e gerenciar seu trabalho. Seus trejeitos ritualísticos – percebidos especialmente em seu processo matinal, desde a forma de se vestir até o valor dado ao desjejum – indicam a fragilidade de um indivíduo frente ao mundo que o cerca, preferindo se estabelecer em um universo íntimo, construído por si e para si, no qual sente-se no controle e a partir do qual exibe um falso ar de segurança. A chegada de Alma, uma jovem garçonete de origem desconhecida (apesar do sotaque e de um brevíssimo momento falando em francês, não temos noção da sua origem; sua condição de plebeia estrangeira, no entanto, é constantemente pontuada seja pela forma como é destratada durante um banquete aristocrático ou pela forma como é ignorada por certa personagem da realeza), começa a desconstruir todos os muros que Reynolds levantou em torno de si – as consequências disso é um dos grandes atrativos do roteiro.
De início, o protagonista lança mão de uma forma de cortejar – e tudo em sua psiquê e persona leva a crer ser uma atitude corriqueira quando colocado nessa condição – que, ao mesmo tempo que busca exalar sua pseudossegurança, molda (com tecidos) a pessoa amada ao seu modo em uma tentativa de projeção do seu mundo pessoal. O desenrolar da relação vai gerando uma crescente tensão, muito bem explorada por Anderson na maneira como aumenta o som do passar de manteiga em uma torrada ou da água enchendo um copo – o incômodo é trabalhado competentemente por Lewis no olhar, na respiração e na forma como o verbaliza. Krieps encarna Alma sem exageros e a maneira como a atriz apresenta suas falas de forma contida ou trabalha seus olhares revelam muito sobre a personagem; sua ausência entre as indicadas ao Oscar merece ser sentida. Leslie Manville, por sua vez, fecha a trinca, oferecendo ao espectador uma daquelas atuações inspiradas. Preocupada com os rumos da vida do irmão, Cyril surge, muitas vezes, dando sugestões que ora flertam com o bem-estar do irmão enquanto indivíduo ora limitam-se ao bom funcionamento dos negócios da família. Cyril acaba por se tornar o grande mistério de “Trama fantasma”, pois dentro de todas as disputas de poder que permeiam a história, suas motivações acabam sendo as mais ambíguas.
Embalado por uma das melhores trilhas sonoras dos últimos anos – Jonny Greenwood, multi-instrumentista da banda inglesa Radiohead, aposta em uma sonoridade que corteja o impressionismo, consolidando-se como destacado compositor de trilhas sonoras em mais uma excelente parceria com Paul Thomas Anderson –, “Trama fantasma” é um drama psicológico maduro e, sem dúvida, a melhor surpresa do Oscar 2018. 

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