Direção: Paul Thomas Anderson
Não deve ser fácil dividir a cena com Daniel Day-Lewis. O ator
britânico, reconhecido por sua completa entrega aos personagens que
dá vida, é, sem sombra de dúvida, um dos melhores atores em
atividade - algo que, por si só, já impõe muita responsabilidade a quem com ele contracena. O recente anúncio de sua aposentadoria é um duro golpe
aos amantes das artes dramáticas e, se de fato cumprir sua decisão,
Day-Lewis, ao menos, para no auge, entregando um personagem multidimensional em
mais uma bela parceria com o diretor Paul Thomas Anderson (a primeira
– não me canso de elogiar – ocorreu em 2007 com “Sangue
Negro”). Ao falar sobre aquele filme, já refletia sobre a
importância de se ter coadjuvantes à altura dos embates travados
pelo protagonista (sejam eles internos ou externos): lá, a
responsabilidade caiu sobre o jovem Paul Dano e neste “Trama
Fantasma”, a incumbência cabe a também jovem Vicky Krieps e a
Leslie Manville. Não preciso afirmar que o bom resultado da
narrativa depende da cumplicidade desse trio – mérito não apenas
do trabalho de concepção dos personagens por parte dos atores, mas
também da direção segura de Anderson, conhecido por criar
narrativas (os roteiros são de sua autoria) recheadas de personagens
complexos (vide Boogie Nights,
Magnólia, O mestre).
Assim como no título original de
Sangue Negro (“There
will be blood” – algo como
“haverá sangue”
–, que funciona quase como um aviso a espectadores sobre a natureza crua da história de Daniel Plainview), “Trama
fantasma” guarda muito em seu
título e, desta vez, a tradução foi bem mais fiel ao título em inglês, o qual toma, por empréstimo, um signo linguístico
pertencente ao campo semântico da moda (ambiente onde a narrativa se
desenrola). A palavra “trama”
refere-se a fios condutores interligados, formadores de uma rede –
aquilo que foi tecido. É, portanto, um elemento que molda e que,
acompanhado pelo substantivo adjetivado “fantasma”,
diz muito sobre o protagonista Reynolds Woodcock.
Mergulhado
em um complexo de Édipo,
Woodcock vive sob a sombra de
sua mãe morta, seja nas lembranças que insiste em verbalizar, no
trabalho que realiza obsessivamente (em certo momento ele diz: “ela
me ensinou meu ofício”) ou
nas escolhas que toma em sua vida pessoal – a ausência de um
casamento e a dependência emocional em relação à irmã, alçada
ao lugar de figura materna e de quem Reynolds necessita para mediar
suas relações e gerenciar seu trabalho.
Seus trejeitos ritualísticos
– percebidos especialmente em seu processo matinal, desde a forma
de se vestir até o valor dado ao desjejum – indicam a fragilidade
de um indivíduo frente ao mundo que o cerca, preferindo se
estabelecer em um universo
íntimo, construído por si e para si, no qual sente-se no controle e
a partir do qual exibe um falso ar de segurança. A
chegada de Alma, uma jovem garçonete de origem desconhecida (apesar
do sotaque e de um brevíssimo momento falando em francês, não
temos noção da sua origem; sua condição de plebeia
estrangeira, no entanto, é
constantemente pontuada seja pela forma como é destratada durante um
banquete aristocrático
ou pela forma como é ignorada por certa personagem da realeza),
começa a desconstruir todos os muros que Reynolds levantou em torno
de si – as consequências
disso é um dos grandes atrativos do roteiro.
De início, o
protagonista lança mão de
uma forma de cortejar –
e tudo em sua psiquê e persona leva a crer ser
uma atitude corriqueira quando colocado nessa condição
– que, ao mesmo tempo que
busca exalar sua pseudossegurança, molda (com tecidos) a pessoa amada ao seu modo em uma tentativa de projeção do seu mundo pessoal. O
desenrolar da relação vai gerando uma crescente
tensão, muito bem explorada por Anderson na maneira como aumenta o
som do passar de manteiga em uma torrada ou da água enchendo um copo
– o incômodo é trabalhado competentemente
por Lewis no olhar, na
respiração e na forma como o verbaliza. Krieps encarna Alma sem
exageros e a maneira como a
atriz apresenta suas falas de forma contida ou trabalha
seus olhares revelam
muito sobre a personagem; sua ausência entre as indicadas ao Oscar merece ser sentida. Leslie
Manville, por sua vez, fecha a trinca, oferecendo ao espectador uma
daquelas atuações inspiradas. Preocupada com os rumos da vida do
irmão, Cyril surge, muitas vezes, dando sugestões que ora flertam
com o bem-estar do irmão enquanto indivíduo ora limitam-se ao bom
funcionamento dos negócios da família. Cyril acaba por se tornar o
grande mistério de “Trama fantasma”,
pois dentro de todas as
disputas de poder que permeiam a história, suas motivações acabam
sendo as mais ambíguas.
Embalado por uma das melhores
trilhas sonoras dos últimos anos – Jonny Greenwood,
multi-instrumentista da banda inglesa Radiohead, aposta em uma
sonoridade que corteja o impressionismo, consolidando-se como
destacado compositor de trilhas sonoras em mais uma excelente
parceria com Paul Thomas Anderson –, “Trama fantasma”
é um drama psicológico maduro
e, sem dúvida, a melhor
surpresa do Oscar 2018.
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