terça-feira, 9 de janeiro de 2018

“A GHOST STORY” / “VIVA: A VIDA É UMA FESTA” (A GHOST STORY / COCO – EUA, 2017)


A dimensão da memória é, juntamente à dimensão do tempo – com a qual guarda profunda intimidade –, um dos mistérios mais complexos com que temos de conviver. A memória é uma construção, seja em caráter individual ou social, e, portanto, assumimos responsabilidade sobre ela. O que lembramos ou deixamos de lembrar, no entanto, é obviamente influenciado não somente pelas escolhas que realizamos em vida, mas também pela (e, até mesmo, em função da) importância que determinado alguém ou determinada coisa exerce em nós. Dessa forma, na construção da memória, realçamos / valorizamos pessoas e episódios em detrimento de outros que, por sua vez, são recalcados – fator que indica o grau de responsabilidade consciente ou inconsciente que desempenhamos sobre esse processo. Por isso, ao esquecermos de algo ou de alguém, somos tomados por um sentimento de culpa, pois reconhecemos que somos responsáveis por nossas lembranças. Muito além disso, o reconhecimento de tal processo nos impõe uma realidade bem ameaçadora, pois tomamos consciência de que, assim como podemos esquecer, sempre haverá a possibilidade de sermos esquecidos. Este círculo, esquecer / ser esquecido, pode se tornar vicioso e, não poucas vezes, testemunhamos ou vivenciamos situações em que, no intuito de temer o esquecimento (seu ou do outro), vemo-nos estagnados em um processo deveras prejudicial.

Na contramão deste, está o antônimo de esquecer: lembrar. Se em um olhar metafórico o ato de esquecer assemelha-se ao fechar de uma porta, lembrar é a ação diametralmente oposta e, mesmo quando a lembrança não se refere a um alguém ou a alguma coisa boa, reconhecemos no ato de lembrar um passo importante para o futuro; da mesma forma que lembramos no intuito repetir, lembramos para evitar. Não à toa, ao lembrarmos de alguém ou ao sermos lembrados por alguém, somos, usualmente, tomados por um sentimento de alegria e satisfação – constatamos, também aqui, a responsabilidade que temos no processo, pois tomamos consciência de que realizamos algo marcante para alguém ou fomos marcados por outros que se tornam, por isso, especiais. Deve-se, no entanto, admitir que, muitas vezes, o processo de lembrar / ser lembrado pode, também, tornar-se um círculo vicioso, incidindo em sentimentos e atitudes prejudiciais para si e para os outros.
A responsabilidade, entretanto, é uma incumbência que assumimos quando vivos. É, portanto, uma tarefa de tempo limitado para além do qual perdemos qualquer influência. Essa condição é angustiante e se temos medo de sermos esquecidos, se temos a intenção de sermos lembrados e sabemos que o prazo para tal não é infinito, buscamos realizar em vida todo o possível para que nossa memória ou a memória de alguém especial perdure.
O ano de 2017 teve a especificidade de lançar nos cinemas dois filmes que tocam, cada um à sua maneira, nessas questões. Refiro-me a A Ghost Story (direção: David Lowery) e Viva: a vida é uma festa (direção: Lee Unkrich e Adrian Molina). O primeiro, a angustiante e solitária travessia de um fantasma pelo tempo e pelo consequente desvanecimento de tudo aquilo que lhe dava sentido quando vivo e o segundo, uma tocante aventura sobre um menino que, transportado ao mundo dos mortos, busca encontrar o tataravô que a família insiste em esquecer. São, portanto, dois filmes que tratam da memória pós-morte. As intenções são, claramente, distintas e, em função disso, a direção opta por estéticas bem diferentes.
Viva: a vida é uma festa é uma animação que aposta nas cores e nas músicas (esta, um elemento fundamental para as motivações do protagonista) a fim de criar um mundo dos mortos convidativo e aprazível, pois é uma história contada a partir do ponto de vista de uma criança – inserida em uma cultura que tem, por tradição, o costume de celebrar os mortos – e realizado para crianças (mas não apenas elas). A ghost story também possui na música um elemento importante, uma vez que o protagonista trabalha com isso. Sua estética, no entanto, aposta em sonoridades mais doídas que refletem a melancolia que domina o personagem. No filme de Lowery, as cores se limitam a tons monocromáticos que indicam a perda gradativa de referências cuja existência dava sentido ao personagem principal. Em ambos os filmes, a expressão dos protagonistas gera empatia junto ao espectador: se Miguel encanta com seus olhares e sua covinha que aparece em apenas uma bochecha, C (identidade do protagonista de A ghost story), mesmo sendo um lençol com furos no lugar dos olhos, possui uma profunda expressividade, pois o formato dos furos indica um olhar tristonho e cansado. São expressões que evocam a condição de cada personagem – Miguel sai em busca de algo, C está preso a algo; Miguel luta pela lembrança, C luta contra o esquecimento. A busca de Miguel desemboca na possibilidade de receber quem partiu em nosso mundo, a busca de C desemboca em libertar-se deste mundo. Em Viva, a finitude do tempo é fundamental para Miguel agir. Em A ghost story, a infinita dimensão do tempo é fundamental para C agir. No filme de Unkrich e Molina, o retorno eterno é algo a ser celebrado. No filme de Lowery, o eterno retorno é algo aterrorizante. Isso se dá, justamente, porque Viva: a vida é uma festa está mais próximo do conceito de lembrar / ser lembrado e A ghost story aproxima-se do conceito de esquecer / ser esquecido. As reflexões e sentimentos alimentados pelos dois são, embora distintos, igualmente relevantes.
Em determinado momento de A ghost story, transportei-me para o exato momento em que fechei a porta do apartamento onde vivi boa parte de minha vida para não mais voltar. Tendo vendido o imóvel, ele não poderia mais ser chamado de meu e fui tomado pela terrível sensação de que todas aquelas lembranças ali vividas perder-se-iam para sempre. Alguns meses depois, a convite da nova proprietária e pela necessidade de pegar um documento, retornei ao apartamento. Ao entrar, me deparei com um espaço totalmente modificado e, após sentar-me na poltrona, fui surpreendido pela pergunta da nova proprietária: “reconhece sua casa?”. Muito mais que uma simples brincadeira entre pessoas que se conectam pela venda / compra de um imóvel, a pergunta dela guarda a consciência inconsciente de que, não importa o tempo que passe nem quantas pessoas serão proprietárias daquele apartamento, as lembranças ali construídas jamais poderão ser apagadas, pois estarão guardadas não apenas na minha memória ou na daqueles com quem ali dividi momentos, mas também na infinita dimensão do tempo, podendo vir, numa acepção filosófica, a repetir-se eternamente. Tal condição é, ao mesmo tempo, consoladora e angustiante, pois, enquanto expõe a responsabilidade que assumimos sobre o que fica e o que se perde neste círculo temporal, garante a nós uma lição fundamental: a importância de aprendermos a deixar as coisas irem, admitindo, com isso, que elas assumem o protagonismo necessário para nossas vidas e que podemos retornar a elas pelo poder da memória. A melancolia e angústia de C encontra-se, justamente no fato de que, morto, é incapaz de interferir no processo de transformação do mundo que costumava habitar e, em vez de permitir que as coisas aconteçam, acaba preso a uma dor sem fim.
Ao assistir Viva: a vida é uma festa, recordei outro momento de minha experiência. Alguns anos atrás, passando de ônibus por uma rua, vi um cartaz anunciando um show – não me recordo qual artista – que ocorreria no dia 17 de janeiro daquele ano. De fato o artista não foi, em momento algum, importante para mim, pois ao ler a data do show – data esta que chegaria em poucos dias – fui tomado de ímpeto pela lembrança de que, naquele dia, seria comemorado o aniversário de minha avó caso ela estivesse viva. Fui tomado, imediatamente, por um sentimento de culpa; era imperdoável esquecer o aniversário de alguém tão importante em minha vida e isso fatalmente aconteceria caso não passasse por aquele cartaz naquele dia. Daquele momento em diante, lembrar da minha avó e de todos aqueles que partiram tornou-se um exercício não apenas de respeito, mas principalmente de afeto. Miguel, a criança viva transportada para o mundo dos mortos, busca justamente resgatar o afeto há tanto perdido entre seus entes queridos e faz isso no intuito de combater o grande vilão deste filme da Pixar: o esquecimento. Em determinado momento de Viva, um personagem encontra o fatídico destino daqueles que são esquecidos pelos vivos e a belíssima estratégia utilizada pelos animadores, apesar de não excluir totalmente, ao menos, oferece um rico ar de eufemismo àquela situação ameaçadora. Falo sobre esta passagem do filme, pois A ghost story elabora uma situação semelhante – muito mais crua, apesar de, neste caso, causar alívio, uma vez que representa a libertação daqueles personagens.

Dois protagonistas: um é criança, o outro adulto – um vivo no mundo dos mortos, outro morto no mundo dos vivos. Ambos imersos em um mundo de lembranças e esquecimentos. Esta seja, talvez, a maior virtude da arte: duas obras distintas que se aproximam pelos sentimentos que evocam, cada uma com suas intenções e estratégias estéticas. Ambas me tocaram e, muito por isso, busquei colocá-las em diálogo, abrindo espaço para reflexões mais profundas, esta, sem dúvida, a maior virtude da arte.

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