A
dimensão da memória é, juntamente à dimensão do tempo – com a
qual guarda profunda intimidade –, um dos mistérios mais complexos
com que temos de conviver. A memória é uma construção, seja em
caráter individual ou social, e, portanto, assumimos
responsabilidade sobre ela. O que lembramos ou deixamos de lembrar,
no entanto, é obviamente influenciado não somente pelas escolhas
que realizamos em vida, mas também pela (e, até mesmo, em função
da) importância que determinado alguém ou determinada coisa exerce
em nós. Dessa forma, na construção da memória,
realçamos / valorizamos pessoas e episódios em detrimento de outros
que, por sua vez, são recalcados – fator que indica o grau de
responsabilidade consciente ou inconsciente que desempenhamos sobre
esse processo. Por isso, ao esquecermos de algo ou de alguém, somos
tomados por um sentimento de culpa, pois reconhecemos que somos
responsáveis por nossas lembranças. Muito além disso, o
reconhecimento de tal processo nos impõe uma realidade bem
ameaçadora, pois tomamos consciência de que, assim como podemos
esquecer, sempre haverá a possibilidade de sermos esquecidos. Este
círculo, esquecer / ser esquecido, pode se tornar vicioso e, não
poucas vezes, testemunhamos ou vivenciamos situações em que, no
intuito de temer o esquecimento (seu ou do outro), vemo-nos
estagnados em um processo deveras prejudicial.
Na contramão deste, está o antônimo de esquecer: lembrar. Se em um olhar metafórico o ato de esquecer assemelha-se ao fechar de uma porta, lembrar é a ação diametralmente oposta e, mesmo quando a lembrança não se refere a um alguém ou a alguma coisa boa, reconhecemos no ato de lembrar um passo importante para o futuro; da mesma forma que lembramos no intuito repetir, lembramos para evitar. Não à toa, ao lembrarmos de alguém ou ao sermos lembrados por alguém, somos, usualmente, tomados por um sentimento de alegria e satisfação – constatamos, também aqui, a responsabilidade que temos no processo, pois tomamos consciência de que realizamos algo marcante para alguém ou fomos marcados por outros que se tornam, por isso, especiais. Deve-se, no entanto, admitir que, muitas vezes, o processo de lembrar / ser lembrado pode, também, tornar-se um círculo vicioso, incidindo em sentimentos e atitudes prejudiciais para si e para os outros.
A
responsabilidade, entretanto, é uma incumbência que assumimos
quando vivos. É, portanto, uma tarefa de tempo limitado para além
do qual perdemos qualquer influência. Essa condição é angustiante
e se temos medo de sermos esquecidos, se temos a intenção de sermos
lembrados e sabemos que o prazo para tal não é infinito, buscamos
realizar em vida todo o possível para que nossa memória ou a
memória de alguém especial perdure.
O
ano de 2017 teve a especificidade de lançar nos cinemas dois filmes
que tocam, cada um à sua maneira, nessas questões. Refiro-me a A
Ghost Story (direção: David Lowery) e Viva: a vida é
uma festa (direção: Lee Unkrich e Adrian Molina). O
primeiro, a angustiante e solitária travessia de um fantasma pelo
tempo e pelo consequente desvanecimento de tudo aquilo que lhe dava
sentido quando vivo e o segundo, uma tocante aventura sobre um menino
que, transportado ao mundo dos mortos, busca encontrar o tataravô
que a família insiste em esquecer. São, portanto, dois filmes que
tratam da memória pós-morte. As intenções são, claramente,
distintas e, em função disso, a direção opta por estéticas bem
diferentes.
Viva:
a vida é uma festa é uma animação que aposta nas cores e
nas músicas (esta, um elemento fundamental para as motivações do
protagonista) a fim de criar um mundo dos mortos convidativo e
aprazível, pois é uma história contada a partir do ponto de vista
de uma criança – inserida em uma cultura que tem, por tradição,
o costume de celebrar os mortos – e realizado para crianças (mas
não apenas elas). A ghost story também possui na música um elemento importante, uma vez que o
protagonista trabalha com isso. Sua
estética, no entanto,
aposta em sonoridades mais
doídas que refletem a melancolia que domina o personagem. No filme
de Lowery, as cores se limitam a tons
monocromáticos
que indicam
a perda gradativa de referências cuja existência dava sentido ao
personagem principal. Em ambos os filmes, a expressão dos
protagonistas gera empatia junto ao espectador: se Miguel encanta com
seus olhares e sua covinha que aparece em apenas uma bochecha, C
(identidade do protagonista de A ghost story),
mesmo sendo um lençol com furos no lugar dos olhos, possui uma
profunda expressividade, pois o formato dos furos indica um olhar
tristonho e cansado. São expressões que evocam
a condição de cada personagem – Miguel sai em busca de algo, C
está preso a
algo; Miguel luta pela lembrança, C luta contra o esquecimento. A
busca de Miguel desemboca na possibilidade de receber quem partiu em
nosso mundo, a busca de C desemboca em libertar-se deste
mundo. Em Viva,
a finitude do tempo é fundamental para Miguel agir. Em
A ghost story,
a infinita dimensão do tempo é fundamental para C agir. No
filme de Unkrich e Molina, o retorno eterno é algo a ser celebrado.
No filme de Lowery, o eterno retorno é algo aterrorizante. Isso se
dá, justamente, porque Viva: a vida é uma festa está mais próximo do conceito de lembrar / ser lembrado e A
ghost story aproxima-se do
conceito de esquecer / ser esquecido. As reflexões e sentimentos
alimentados pelos dois são, embora distintos, igualmente relevantes.
Em
determinado momento de A ghost story,
transportei-me para o exato momento em que fechei a porta do
apartamento onde vivi boa parte de minha vida para não mais voltar.
Tendo vendido o imóvel, ele não poderia mais ser chamado de meu e
fui tomado pela terrível sensação de que todas aquelas lembranças
ali vividas perder-se-iam para sempre. Alguns meses depois, a convite
da nova proprietária e pela necessidade de pegar um documento,
retornei ao apartamento. Ao entrar, me deparei com um espaço
totalmente modificado e, após sentar-me na poltrona, fui
surpreendido pela pergunta da nova proprietária: “reconhece sua
casa?”. Muito mais que uma
simples brincadeira entre pessoas que se conectam pela venda / compra
de um imóvel, a pergunta dela guarda a consciência inconsciente de
que, não importa o tempo que passe nem quantas pessoas serão
proprietárias daquele apartamento, as lembranças ali construídas
jamais poderão ser apagadas, pois estarão guardadas não apenas na
minha memória ou na daqueles com quem ali dividi momentos, mas
também na infinita dimensão do tempo, podendo vir, numa acepção
filosófica, a repetir-se eternamente. Tal
condição é, ao mesmo tempo, consoladora e angustiante, pois,
enquanto expõe a responsabilidade que assumimos sobre o que fica e o
que se perde neste círculo temporal, garante a nós uma lição
fundamental: a importância de aprendermos a deixar as coisas irem,
admitindo,
com isso, que elas assumem o
protagonismo necessário para nossas vidas e que
podemos retornar a elas pelo
poder da memória. A
melancolia e angústia de C encontra-se, justamente no fato de que,
morto, é incapaz de interferir no processo de transformação do
mundo que costumava habitar e, em vez de permitir que as coisas
aconteçam, acaba preso a uma dor sem fim.
Ao
assistir Viva: a vida é uma festa,
recordei outro momento de minha experiência. Alguns
anos atrás, passando de ônibus por uma rua, vi um cartaz anunciando
um show – não me recordo qual artista – que ocorreria no dia 17
de janeiro daquele ano. De fato o artista não foi, em momento algum,
importante para mim, pois ao ler a data do show – data esta que
chegaria em poucos dias – fui tomado de ímpeto pela lembrança de
que, naquele dia, seria comemorado o aniversário de minha avó caso
ela estivesse viva. Fui tomado, imediatamente, por um sentimento de
culpa; era imperdoável esquecer o aniversário de alguém tão
importante em minha vida e isso fatalmente aconteceria caso não
passasse por aquele cartaz naquele dia. Daquele
momento em diante, lembrar da minha avó e de todos aqueles que
partiram tornou-se um exercício não apenas de respeito, mas
principalmente de afeto. Miguel, a criança viva
transportada para o mundo dos mortos, busca justamente resgatar o
afeto há tanto perdido entre seus
entes queridos e faz isso no
intuito de combater o grande vilão deste filme da Pixar: o
esquecimento. Em determinado momento de Viva,
um personagem encontra o fatídico destino daqueles que são
esquecidos pelos vivos e a belíssima estratégia utilizada pelos
animadores, apesar de não excluir totalmente, ao menos, oferece um
rico ar
de eufemismo àquela situação ameaçadora.
Falo sobre esta passagem do filme, pois A ghost story elabora uma situação semelhante – muito mais crua, apesar de,
neste caso,
causar alívio, uma vez que
representa a libertação daqueles
personagens.
Dois
protagonistas: um é criança, o outro adulto – um vivo no mundo
dos mortos, outro morto no mundo dos vivos. Ambos imersos em um mundo
de lembranças e esquecimentos.
Esta seja, talvez, a maior
virtude da arte: duas obras distintas que se aproximam pelos
sentimentos que evocam, cada uma com suas intenções e estratégias
estéticas. Ambas me tocaram e, muito por isso, busquei colocá-las
em diálogo, abrindo espaço para reflexões mais profundas, esta,
sem dúvida, a maior virtude da arte.
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