“O
curso do rio se abria diante de nós e depois se fechava à nossa
passagem, como se a floresta cerrasse fileiras calmamente por sobre
as águas para barrar nosso caminho de volta. Penetrávamos mais e
mais fundo no coração das trevas. E o silêncio ali era imenso.”
É
sob o céu e diante das silhuetas da “maior, e mais vasta, cidade
da Terra” que Charles Marlow, em uma atitude quase confessional –
de quem deseja, desesperadamente, dissertar sobre algo –, pronuncia
a frase que inicia seu relato: “Aqui também (…) foi um dos
lugares mais tenebrosos da Terra”. Sua reflexão acerca de Londres,
embora soe absurda, mesmo no período de trânsito entre os séculos
XIX e XX, ganha sentido quando analisada sob perspectivas de outrora
– época em que o progresso pertencia ao Império de Roma e
Londres, ainda sem nome, era o “fim do mundo”. Diz Marlow:
“imaginem um jovem e decente cidadão de toga (…) vindo para cá
(…) Ele precisa viver no meio do incompreensível, que também é
detestável. (…) Imaginem os remorsos crescentes, o desejo de
fugir, a repulsa impotente, a rendição – o ódio.” Não à toa,
ele faz referência aos primórdios londrinos, pois serve de analogia
não apenas às suas vivências, mas também ao momento em que vive,
à luz do progresso pós-revolução industrial, quando a Inglaterra
consolidou-se como marco civilizatório do Ocidente. O mal-estar
proveniente da escuridão e da inoperância da embarcação onde se
encontram narrador e ouvintes ganha caráter metafórico, pois denota
as trevas nas quais a autodenominada civilização mergulhou em nome
do desenvolvimento e da “divina missão” de espalhá-lo pelo
globo.
Parece,
porém, que eu era um dos envolvidos na Obra, com maiúscula –
sabem como é. Algo como um emissário da luz, uma espécie inferior
de apóstolo. Besteiras dessa ordem vinham circulando em profusão
naquela época, tanto em letra impressa como de viva voz, e a boa
senhora, exposta à euforia de toda aquela vigarice, acabara se
deixando levar. Falou de “desapegar esses milhões de ignorantes
dos seus modos horrendos”, insistindo a tal ponto, que, dou-lhes a
minha palavra, fiquei muito constrangido.” (CONRAD, 2008, p.23)
Marlow
é o típico marinheiro viajante que, diante de tantas experiências
em terras distantes, possui muitas histórias para contar. Marlow, no
entanto, não é porta-voz de sua história, cabendo a um outro
viajante esse papel. Coração das trevas, para muitos a
obra-prima de Joseph Conrad, é uma história dentro da história e
se cabe ao autor um lugar de destaque dentro da obra, esse lugar é o
do narrador anônimo, aquele que, através do contato com histórias
diversas (Conrad foi marinheiro e acumulou experiências por todo o
mundo), é capaz de transmitir narrativas sem a necessidade de se
fechar a uma verdade inexorável, abrindo, em contrapartida, as
muitas possibilidades que sua fala sugere. Assume, portanto, uma
posição cada vez mais rara na arte de narrar, pois, a partir da sua
“faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 2012, p.
213), é capaz de aconselhar:
Aconselhar
é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está se desenrolando. Para obter
essa sugestão, seria necessário primeiro saber narrar a história
(sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em
que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância
viva vivida tem um nome: sabedoria. (ibidem, p. 216 et seq.)
Coração
das trevas é uma obra tecida na substância viva vivida – em
uma das páginas mais tenebrosas da história da humanidade – e que
se torna universal, pois não se encerra em si, abrindo-se para a
posteridade como deve uma obra clássica. Uma das grandes qualidades
da narrativa, inclusive, está no fato dela não ignorar o seu ponto
de vista; não há uma tentativa de se colocar no lugar de fala do
oprimido – Marlow reconhece seu lugar de opressor e, diante disso,
focaliza seu relato nas ações do europeu a partir da observação
do resultado delas. A existência de um narrador anônimo que dá voz
à narrativa de Marlow escancara a ideia do fato representado –
incapaz de abarcar toda a realidade e, portanto, aberta a novas
intervenções ou pontos de vista: “é impossível transmitir a
sensação vivida de qualquer momento dado da nossa existência –
aquilo que constitui a sua verdade, o seu sentido – a sua essência
sutil e penetrante. É impossível. Vivemos, como sonhamos –
sozinhos...” (CONRAD, op. cit., p. 46); como lembra o narrador
anônimo em um dos poucos momentos em que interfere a voz de Marlow,
“soubemos estar predestinados a, antes que começasse o fluxo da
vazante, ouvir o relato de uma das experiências inconclusivas de
Marlow.” (ibidem, p. 15)
O
protagonista compartilha com outros homens do mar os episódios
vividos durante o curto período em que foi marinheiro de água doce.
Contratado por uma Companhia para uma missão na África colonial,
Marlow, antes mesmo de embarcar rumo ao seu destino, demonstra ter
ciência de estar diante de um continente retalhado pelo imperialismo
europeu:
numa
das extremidades um grande mapa lustroso exibindo todas as cores do
arco-íris. Havia uma vasta extensão de vermelho – o que é bom de
se ver a qualquer momento, porque indica que estão trabalhando de
verdade naqueles lugares – um bocado de azul, um pouco de verde,
pequenas manchas de laranja, e, na Costa Oriental, uma extensão
comprida de púrpura, para mostrar onde os alegres pioneiros do
progresso tomavam alegremente a boa cerveja clara. No entanto, não
era para nenhum deles que eu ia. A minha meta era o amarelo. Bem no
centro. (ibidem, p. 19)
A
origem britânica de Marlow fica evidente quando, mesmo após ter
vivenciado as experiências que narra, se gaba da vasta extensão
rubra que marca o mapa africano em referência aos domínios ingleses
na região. Sua meta, no entanto, estava no amarelo, indicador da
única colônia belga no continente, o Congo e seu “rio –
fascinante – mortífero – lembrando uma serpente”.
Congoleses seguram mãos decepadas por colonizadores belgas |
A
colonização do Congo Belga foge ao modelo consagrado historicamente
pelos europeus. Sob o domínio do rei Leopoldo II, o Estado [“]
Livre [”] do Congo tornou-se uma propriedade privada do monarca
que, aproveitando-se das riquezas naturais do local, instituiu um dos
sistemas de exploração mais sanguinários da história. Não são
poucos os relatos sobre as mutilações sofridas pelos escravos que
não conseguiam atingir a meta de trabalho; Conrad, no entanto, não
faz referências específica às mutilações, uma vez que, segundo
ele próprio, não testemunhou nenhuma: “Durante minha estadia no
interior [do Congo], sempre de olhos e ouvidos bem abertos, eu nunca
ouvi nada sobre o alegado costume [dos feitores belgas] de cortar as
mãos dos nativos, e estou convencido de que esse costume nunca
existiu ao longo do curso do rio ao qual se limitou minha
experiência” (CONRAD apud. ALENCASTRO, 2008, p. 171). Por outro
lado, o autor não se priva em demonstrar como o avanço do progresso
foi responsável pela desumanização da população local em uma das
passagens mais chocantes da obra:
Estavam
morrendo aos poucos – era muito claro. Não eram inimigos, não
eram criminosos, não eram mais coisa alguma que fosse terrena –
nada mais que sombras negras da doença e da fome, jazendo de
cambulhada na penumbra verde. Trazidos de todos os recantos da costa
com toda a legalidade dos contratos temporários, perdidos em terreno
hostil, alimentados com comida estranha, adoeciam, tornavam-se
ineficientes, e finalmente lhes permitiam que se arrastassem até ali
para o descanso. Aquelas formas moribundas eram livres como o ar –
e quase igualmente insubstanciais. (CONRAD, op. cit., p. 30)
Desumanização,
inclusive, pode ser a palavra que melhor define o proclamado processo
civilizatório que Coração das trevas denuncia. A obra
demonstra reiteradamente o quanto os mares do progresso mergulharam a
humanidade nas trevas e o determinismo não se priva de lançar sua
mão sobre alguns dos personagens – curiosamente aqueles que são
notadamente identificados pelos seus respectivos nomes; a saber:
Marlow, Fresvelen e Kurtz.
Fresvelen,
antecessor de Marlow no comando da embarcação, é descrito como “a
criatura mais gentil e tranquila que jamais caminhou sobre dois pés”,
mas que após uma negociação envolvendo duas galinhas, “achou que
fora enganado de alguma forma no negócio, desceu do barco e deu uma
sova de pau no chefe da aldeia.”
já
estava lá havia alguns anos envolvido com a nobre causa, sabem, e é
provável que tenha finalmente sentido a necessidade de reafirmar de
algum modo o seu respeito por si mesmo. E por isso surrou o pobre
velho negro sem dó nem piedade, enquanto uma parte do povo dele
assistia, paralisada, até algum homem – disseram-me que foi o
filho do chefe – em desespero diante dos gritos do pobre velho,
reagir com uma ameaça de estocada da sua lança – e é claro que
ela penetrou facilmente entre as omoplatas do homem branco. (ibidem,
p. 18)
Kurtz,
por sua vez, é a grande figura dominante de Coração das Trevas.
Objetivo principal da missão de Marlow, Kurtz é um mistério para o
protagonista; identificado como um “homem notável”, ele,
reconhecidamente, somatiza todo o processo civilizatório – todo o
progresso – em si. Não à toa, é de interesse geral o retorno
dele para a Europa. Encerrado na floresta – fornecendo em
quantidade, através de “métodos inadequados”, o marfim da
melhor qualidade –, Kurtz escancara o sistema corrupto que rege a
grandiosa missão europeia, recebendo em retorno a admiração de
Marlow e a desconfiança dos outros funcionários da Companhia.
Ademais, Kurtz é a figura responsável por elaborar o importante
relatório sobre a “Supressão dos Costumes Selvagens” cujo
pós-escrito “Exterminem todos os brutos!” resume toda expansão
da civilização moderna.
Os
elementos reunidos transformam Coração das trevas em uma
denúncia contra o imperialismo europeu e em uma crítica profunda
aos rumos que a humanidade tomou em nome do progresso – um olhar
profundo sobre a eficácia das ações tomadas em nome da civilização
e da salvação dos chamados brutos, restando-nos repetir, assim como
Kurtz, as palavras que resumem o mal-estar proveniente da consciência dos fatos: “O horror!
O horror!”
REFERÊNCIAS:
ALENCASTRO,
Luiz Felipe de. Persistência das trevas. In: CONRAD, Joseph.
Coração das trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
p. 155 – 179. (Posfácio)
BENJAMIN,
Walter. O
narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
In: Magia
e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura.
São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1). p. 213 –
240.
CONRAD,
Joseph. Coração das trevas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário