Autor:
Hermann Hesse
“Havia
amado, e amando encontrara a si mesmo. Mas a maioria dos homens amam
para se perder em seu amor.”
Emil
Sinclair, filho da burguesia envolto nos eufemismos da instituição
familiar – alheio à profundidade das relações sociais que o
permeiam e das quais faz parte. Ao início da narrativa Sinclair –
narrador e personagem – retorna aos dez anos de idade para, a
partir de então, traçar sua busca por si. Sua história é mais
importante que a de qualquer outro autor, pois é a sua história.
“a
história de um homem (…) real, único e vivo. Hoje sabe-se cada
vez menos o que isso significa, o que seja um homem realmente vivo, e
se entregam à morte sob o fogo da metralha a milhares de homens,
cada um dos quais constitui um ensaio único e precioso da Natureza.”
Emil
Sinclair (ou seria Hermann Hess?), em meio ao contexto da Primeira
Guerra Mundial, não é um indivíduo isolado do restante, mas tem
consciência (e a busca dessa consciência é a matéria-prima de seu
relato) que, diante de tantas narrativas, todas iguais em
importância, a sua, aquela que seu “sangue murmura”, é a
detentora dos ensinamentos mais relevantes, até mesmo para saber
lidar com o outro: “podemos entender-nos uns aos outros, mas
somente a si mesmo pode cada um interpretar-se.”
Emil
Sinclair, ao início da narrativa, conta dez anos de idade e a sua
percepção do mundo, ou dos mundos, é bem peculiar. A cisão da
realidade em dois ambientes distintos dá teor e sentido às
angústias deste personagem singular e é o ponto de partida para as
inúmeras antíteses que acompanham Sinclair em sua jornada. De um
lado, está o mundo do conforto representado pelo lar, pela família,
pelos ensinamentos morais e religiosos, extremamente conhecido pelo
personagem. Do outro, encontra-se um mundo desconhecido, embora
Sinclair reconheça que o estranho mundo está também no interior do
seu lar, representado por criados, pelas histórias de violência –
elementos que fugiam ao bem-estar dos aposentos dos pais. Não é de
se espantar que, mesmo transitando pelo mundo hostil, o jovem
Sinclair não hesite em retornar sempre para o conforto do mundo
familiar – “era também admirável que existisse aquilo tudo
mais: o estrepitoso e o agudo, o sombrio e o violento, de que se
podia escapar imediatamente, refugiando-se quase de um salto no
regaço maternal.”
O
primeiro contato com as contradições da vida se aprofunda ao passo
que o mundo hostil começa a dominar Sinclair, a tomar posse
gradativa do mundo luminoso,
quase que impedindo seu retorno a este e impelindo-o ao encontro de
si. Perdido nesse confronto (interno),
Sinclair encontra em um colega mais velho – o Demian que dá título
à obra – o suporte para dar seus primeiros passos nesse
caminhar para o além do confortável,
das ordens morais preestabelecidas e
para
o
reconhecimento de que somos todos bem e mal, anjo e demônio ao mesmo
tempo (Abraxas).
“Quem
quiser nascer tem que destruir um mundo”.
Diria
eu, em uma análise bem pessoal,
que durante o percurso, o protagonista caminha por três fases
distintas: o medo, a angústia e a confiança.
O
medo é sua primeira fase, ainda aos dez anos, quando intimidado
por um rapaz das redondezas, busca fugir para o aprazível ambiente
parental, embora perceba que já não encontra a paz desejada,
tomando consciência de que o hostil pode ofuscar o prazer
proveniente do refúgio representado pelas instituições tais quais
família, religião e Estado.
“Só
se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo. Têm medo
porque jamais se atreveram a perseguir seus próprios impulsos
interiores.”
É essa consciência de
que há de se romper os laços com o mundo luminoso da infância
que o arrasta rumo à angústia, representada pelo desejo de superar
o medo e de acelerar o processo de autodescoberta, algo que descobre
ser impossível: “Sentia
que meu destino me puxava, sentia que a concretização já estava
próxima, e enlouquecia de impaciência vendo que nada podia fazer
para precipitá-la”.
Essa fase é o profundo desenvolvimento da narrativa de Hesse, que
coloca Sinclair diante de dois personagens representativos. Enquanto
Emil Sinclair, ele mesmo, representa a busca de si em
processo,
Pistorius, organista,
ex-seminarista, detentor de conhecimentos religiosos e filosóficos,
representa a consciência dessa busca e a incapacidade de aplicá-la
na própria vida e Demian, por
sua vez,
representa a busca em estado avançado, consumado e consciente. Por
fim, Sinclair alcança a
confiança a partir
da
consciência de si, de
sua
individualidade e de seu destino.
Ao
perceber que a procura por Demian o leva a um mergulho interior no
qual enxerga a ele
mesmo como a um espelho, Sinclair
e seu amigo/guia tornam-se um só e o protagonista não mais
necessita de suporte para caminhar, tornando o mundo muito mais
compreensível em suas antíteses.
“Para
eles a humanidade – que amavam tanto quanto nós – era algo
completo que devia ser conservado e protegido. Para nós, a
humanidade era um futuro distante para o qual todos caminhávamos,
sem que ninguém conhecesse sua imagem e sem que se encontrassem
escritas suas leis em parte alguma.”
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