quinta-feira, 24 de setembro de 2015

DEMIAN (Demian – Alemanha, 1919)

Autor: Hermann Hesse

Havia amado, e amando encontrara a si mesmo. Mas a maioria dos homens amam para se perder em seu amor.”

Emil Sinclair, filho da burguesia envolto nos eufemismos da instituição familiar – alheio à profundidade das relações sociais que o permeiam e das quais faz parte. Ao início da narrativa Sinclair – narrador e personagem – retorna aos dez anos de idade para, a partir de então, traçar sua busca por si. Sua história é mais importante que a de qualquer outro autor, pois é a sua história.

a história de um homem (…) real, único e vivo. Hoje sabe-se cada vez menos o que isso significa, o que seja um homem realmente vivo, e se entregam à morte sob o fogo da metralha a milhares de homens, cada um dos quais constitui um ensaio único e precioso da Natureza.”

Emil Sinclair (ou seria Hermann Hess?), em meio ao contexto da Primeira Guerra Mundial, não é um indivíduo isolado do restante, mas tem consciência (e a busca dessa consciência é a matéria-prima de seu relato) que, diante de tantas narrativas, todas iguais em importância, a sua, aquela que seu “sangue murmura”, é a detentora dos ensinamentos mais relevantes, até mesmo para saber lidar com o outro: “podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se.”

Emil Sinclair, ao início da narrativa, conta dez anos de idade e a sua percepção do mundo, ou dos mundos, é bem peculiar. A cisão da realidade em dois ambientes distintos dá teor e sentido às angústias deste personagem singular e é o ponto de partida para as inúmeras antíteses que acompanham Sinclair em sua jornada. De um lado, está o mundo do conforto representado pelo lar, pela família, pelos ensinamentos morais e religiosos, extremamente conhecido pelo personagem. Do outro, encontra-se um mundo desconhecido, embora Sinclair reconheça que o estranho mundo está também no interior do seu lar, representado por criados, pelas histórias de violência – elementos que fugiam ao bem-estar dos aposentos dos pais. Não é de se espantar que, mesmo transitando pelo mundo hostil, o jovem Sinclair não hesite em retornar sempre para o conforto do mundo familiar – “era também admirável que existisse aquilo tudo mais: o estrepitoso e o agudo, o sombrio e o violento, de que se podia escapar imediatamente, refugiando-se quase de um salto no regaço maternal.”

O primeiro contato com as contradições da vida se aprofunda ao passo que o mundo hostil começa a dominar Sinclair, a tomar posse gradativa do mundo luminoso, quase que impedindo seu retorno a este e impelindo-o ao encontro de si. Perdido nesse confronto (interno), Sinclair encontra em um colega mais velho – o Demian que dá título à obra – o suporte para dar seus primeiros passos nesse caminhar para o além do confortável, das ordens morais preestabelecidas e para o reconhecimento de que somos todos bem e mal, anjo e demônio ao mesmo tempo (Abraxas). Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”. Diria eu, em uma análise bem pessoal, que durante o percurso, o protagonista caminha por três fases distintas: o medo, a angústia e a confiança.

O medo é sua primeira fase, ainda aos dez anos, quando intimidado por um rapaz das redondezas, busca fugir para o aprazível ambiente parental, embora perceba que já não encontra a paz desejada, tomando consciência de que o hostil pode ofuscar o prazer proveniente do refúgio representado pelas instituições tais quais família, religião e Estado. Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo. Têm medo porque jamais se atreveram a perseguir seus próprios impulsos interiores.” É essa consciência de que há de se romper os laços com o mundo luminoso da infância que o arrasta rumo à angústia, representada pelo desejo de superar o medo e de acelerar o processo de autodescoberta, algo que descobre ser impossível: Sentia que meu destino me puxava, sentia que a concretização já estava próxima, e enlouquecia de impaciência vendo que nada podia fazer para precipitá-la”. Essa fase é o profundo desenvolvimento da narrativa de Hesse, que coloca Sinclair diante de dois personagens representativos. Enquanto Emil Sinclair, ele mesmo, representa a busca de si em processo, Pistorius, organista, ex-seminarista, detentor de conhecimentos religiosos e filosóficos, representa a consciência dessa busca e a incapacidade de aplicá-la na própria vida e Demian, por sua vez, representa a busca em estado avançado, consumado e consciente. Por fim, Sinclair alcança a confiança a partir da consciência de si, de sua individualidade e de seu destino. Ao perceber que a procura por Demian o leva a um mergulho interior no qual enxerga a ele mesmo como a um espelho, Sinclair e seu amigo/guia tornam-se um só e o protagonista não mais necessita de suporte para caminhar, tornando o mundo muito mais compreensível em suas antíteses.


Para eles a humanidade – que amavam tanto quanto nós – era algo completo que devia ser conservado e protegido. Para nós, a humanidade era um futuro distante para o qual todos caminhávamos, sem que ninguém conhecesse sua imagem e sem que se encontrassem escritas suas leis em parte alguma.”

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