segunda-feira, 21 de março de 2016

A OUTRA VOLTA DO PARAFUSO (The turn of the screw – Inglaterra, 1898)

Autor: Henry James

Eu só podia seguir em frente tomando a “natureza” como minha confidente e levando-a em conta, tratando minha monstruosa provação como um esforço numa direção estranha, é claro, e desagradável, mas algo que exigia, afinal, para manter uma fachada serena, apenas outra volta do parafuso da virtude humana comum.


Imagine-se uma tábua – uma bela tábua de madeira corrida – a ser perfurada, pelo motivo que for, por um parafuso. Imagine que, a cada volta, a pressão que o parafuso exerce ao penetrar em você aumente de intensidade. Imagine agora que o parafuso chegou ao seu limite, mas o portador da chave que enrosca o parafuso não se dá por satisfeito e insiste em tentar mais uma volta – e outra, outra, outra. A angústia a que o título da obra de Henry James faz referência é tão forte que pode ser entendida de múltiplas formas – uma dor interna que te cega à realidade ou uma dor externa capaz de impor as máscaras da sociedade... Difícil chegar ao final de A outra volta do parafuso (alguns traduzem apenas como A volta do parafuso) carregado de indiferença. É uma novela que necessita ser digerida a seu tempo – um tempo que equivale, na humilde opinião deste leitor, à desconstrução daquela em quem você mais confiou durante toda a história – seja pelo bem, seja pelo mal; tal fato explicaria as inúmeras interpretações dadas pela crítica a esta obra de Henry James.

A estrutura narrativa, por si só, já é digna de nota. Um narrador – em primeira pessoa – nos transporta a uma reunião de amigos, os quais, diante da lareira, compartilham histórias aterrorizantes entre si até que um deles, Douglas, afirma conhecer a mais aterrorizante de todas, confiada a ele por uma mulher mais velha com quem manteve uma relação de admiração (que pode ser compreendida pelo viés sexual) anos atrás. Além disso, diz-se portador do registro escrito dessa história, o qual faz questão de mandar buscar a fim de partilhar seu conteúdo com os demais. Assim, pode-se dizer que Douglas toma o papel de narrador, mesmo que de forma indireta, ao ser o responsável pela condução da leitura da história – esta, como dito anteriormente, um registro escrito, em primeira pessoa, por uma mulher que nunca revela seu nome, jovem filha de pároco e recém-contratada para ser governanta e tutora de duas crianças órfãs (ela é contratada pelo tio delas sob a condição de não o incomodar com qualquer tipo de assunto) em uma casa distante.

Na casa, convivem alguns funcionários, dentre os quais a caseira e futura confidente da protagonista, além da jovem Flora, umas das crianças e, portanto, um dos motivos pelos quais a governanta se muda para lá. Dias depois, une-se aos demais Miles, a outra criança, que, vinda da escola, é acompanhada por uma carta de expulsão, a qual não explica as razões para a atitude extrema da direção da instituição – razões que nunca são devidamente esclarecidas pela narrativa. No desenrolar da novela, a governanta percebe a presença de duas figuras fantasmagóricas cujo intento, no olhar dela, é desestabilizar a paz local e, acima de tudo, dominar as crianças através da natureza do mal.

Chega-se, então, ao grande debate suscitado por A outra volta do parafuso. Qual a natureza deste mal que ronda os personagens? A governanta, tomada pelo conflito causado pelas aparições, chega à conclusão, após descrever sua experiência à sua confidente (Srª Groose), que se tratam dos fantasmas de dois antigos funcionários da casa que, dotados de caracteres questionáveis (chega-se a cogitar uma aproximação sexual entre eles) para o padrão moral da protagonista (lembremos de sua ascendência religiosa: ela é filha de um pároco), morreram de formas pouco esclarecidas. A natureza dos espectros é exatamente o oposto da visão da protagonista de seus pupilos – encarados como anjos, dotados da mais sincera pureza; algo que coloca em cheque a expulsão de Miles da escola e a certeza que ela tem de que as crianças, não apenas sabem da existência dos fantasmas, mas também escondem a consciência que têm dessa presença. O conflito, portanto, vai ganhando contornos cada vez mais estreitos, colocando a protagonista diante de uma angústia cuja capacidade de questionar a própria realidade encaminha a narrativa para seu desfecho surpreendente. Fica em aberto as interpretações possíveis sobre o mal que permeia a narrativa: pode ser um mal interno (se pensarmos na possibilidade de os fantasmas serem fruto da imaginação da narradora) ou externo (se pensarmos na existência de fato dos fantasmas e na sua capacidade de manipular aqueles que ali convivem).


A narrativa em primeira pessoa, somada ao fato de um personagem, Douglas, garantir a confiança que tem no indivíduo que a partilhou com ele (garantindo, com isso, a própria veracidade dos fatos contados, pois aconteceram com a própria pessoa que eternizou os acontecimentos em palavras), oferece à narradora uma autoridade inquestionável. Para o leitor, não há dúvidas de que a jovem governanta é uma pessoa confiável; ignora-se, portanto, a mais básica realidade de que um fato narrado – em especial, quando narrado em primeira pessoa – nada mais é que um ponto de vista, algo que faz com que toda a história ganhe um caráter ambíguo, abrindo espaço para as mais diversas opiniões e debates. Dessa forma, não posso terminar este texto sem afirmar que A outra volta do parafuso é literatura de altíssima qualidade. 

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