Direção: Steven Spielberg
Munique
tem tudo que se espera de um filme de Steven Spielberg:
sentimentalismo (pense na relação Elliot / E.T. em E.T. - o
extraterrestre), tensão (lembre
dos raptores na cozinha em Parque dos dinossauros),
cenas grandiosas (como o desembarque norte-americano na Normandia em
O resgate do soldado Ryan)
somado a um teor crítico que serve de base para um belo estudo de
personagem. Se por um lado podemos encarar Munique como
um retorno do diretor às suas origens judaicas pouco mais de dez
anos após conceber A lista de Schindler,
devemos compreender que, aqui, Spielberg soa bem mais crítico com
relação às ações dos
judeus. No filme que lhe
rendeu seu primeiro Oscar de direção, Spielberg foca os horrores da
solução final aplicada pelos nazistas aos judeus, criando
claramente uma relação entre bem e mal da qual emerge a figura de
um salvador que, inicialmente movido por seus interesses, conseguiu
salvar vários seres humanos de um fim trágico nas mãos de um
sistema ideológico cego. Em Munique,
entretanto, é difícil determinar heróis – é impossível
estruturar uma relação bem versus mal, mesmo havendo uma figura
central na narrativa, pois os interesses que movem a história (ou
a História) são muito mais
complexos e difusos – algo que se torna perceptível nos próprios
questionamentos do protagonista.
Munique
tem início na Vila Olímpica
construída na cidade que dá nome ao filme. Foi lá que, em 1972, o
grupo terrorista palestino conhecido como Setembro Negro invadiu o
apartamento destinado à delegação israelense, mantendo toda a
comitiva refém
até o trágico desfecho do episódio com as mortes de todos os
atletas e da grande maioria dos terroristas. É
impossível não perceber o quanto Spielberg
cria, no primeiro ato do filme, um processo de aproximação do
espectador com a situação,
mas não se engane ao achar que ele toma partido de um dos extremos
desse cabo de guerra – perceba o espaço que se abre, logo no
início da trama, para a reação tanto de palestinos quanto de
judeus da cobertura midiática feita sobre o
caso; não faltam lágrimas em ambos os lados, fato que busca
humanizar as figuras envolvidas no atentado (o
que também é acentuado pelos olhares dos personagens em questão).
Apenas a reconstrução
desses
acontecimentos é digna de todo reconhecimento ao trabalho de
direção,
mas a sequência é apenas o ponto de partida para a complexa trama
que se segue e que se baseia
na resposta que o governo de Israel preparou para o caso.
Encabeçada
pela primeira-ministra israelense Golda Meir, o Mossad (serviço de
inteligência local) convoca Avner, antigo guarda-costas de Meir e
marido devoto que aguarda o nascimento do primeiro filho, para
liderar um dos grupos que têm
a missão de eliminar supostas lideranças palestinas que planejaram
o atentado na Alemanha Ocidental. Tomado pelo sentimento de
pertencimento à sua comunidade e pela sombra de seu pai, Avner
aceita a missão, deixando para trás seu lar e sua família a fim
de, junto a mais quatro especialistas, mudar-se para Europa e
realizar o serviço pelo qual foi contratado. O
desenrolar da missão, este sim o grande desenlace do perfil crítico
que a obra possui, gera transformações nesses personagens e causa
impacto no espectador que se vê diante de uma dicotomia curiosa. Por
um lado, diante do afeto construído dentro do grupo e, por outro, da
frieza de suas ações. Cada personagem ali, inclusive, reage a sua
frieza de forma bem particular; se Steve (Daniel Craig, pré-James
Bond) chega a bradar que o “único sangue que lhe importa é o
sangue judeu”, Carl se questiona sobre a estranheza de imaginar-se
como um assassino (para logo receber a resposta de Avner: “Então
imagine-se como outra coisa”).
Todavia
o questionamento mais curioso desses personagens gira em torno da
eficácia de suas ações e do fato delas condizerem, ou não, com o
que o governo israelense afirma. A percepção de que seus alvos são
substituídos por líderes
piores e a dúvida se aqueles alvos tinham, realmente, ligação com
os ocorridos em Munique ou se estavam, na verdade, eliminando
lideranças intelectuais que defendiam o Estado Palestino vão
transformando as percepções dos protagonistas. Não à toa, a
narrativa proporciona um encontro inusitado entre um militante da OLP
(Organização para Libertação da Palestina) e Avner, que, durante
um profundo diálogo, tem a possibilidade de questionar as motivações
dos palestinos para suas ações; a questão de pertencer a um espaço
que possa chamar de pátria é uma resposta muito direta, tornando-se
importantíssimo perceber o eco proveniente desse diálogo na
conversa que, adiante, o mesmo Avner terá com sua mãe.
Outra
transformação importante que se impõe ao protagonista está no
fato de perceber a lógica do terror – reconhecer-se como um
perseguidor de terroristas, torna-o um terrorista a ser perseguido
por outros terroristas. Avner dá-se conta de que pode ser o próximo
eliminado e a paranoia passa a determinar algumas de suas atitudes,
consolidando a
maldição que o perseguirá. Não
se pode ignorar, após tanto
falar de Avner, o belo trabalho realizado por seu intérprete. Eric
Bana, ignorado nas principais premiações daquele biênio de
2005/2006, proporciona um ar inicialmente contido e controlado ao personagem que, ao desenrolar da trama, vai se transformando gradativamente (algo que se nota na atitude do personagem diante de sua paixão pela cozinha) e faz com que
o espectador estranhe certas atitudes, embora seja capaz de
compreendê-las, uma vez que Spielberg jamais desmerece a capacidade crítica do espectador e não exita em expor a barbárie que preenche e envolve os personagens. O que pensar da cena mais chocante do filme,
relacionado a um assassinato frio e meticuloso seguida de uma atitude
simples de Avner logo repreendida por um dos companheiros? Mesmo sem
entrar em detalhes para evitar spoilers, a cena foge a tudo que já
assisti na obra de Spielberg e, por isso, é fácil de ser
reconhecida.
Spielberg,
embalado pelo seu parceiro usual John Williams (em mais uma bela
trilha sonora – talvez a que eu mais goste, além das canônicas),
elabora um estudo meticuloso e demonstra maturidade para explorar um
caminho tão cheio de complexidades e, em certo momento da narrativa,
uma fala de Avner resume o sentimento que preenche o espectador ao
fim da projeção: “Não há paz no final disso”.
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