Autor: Joseph Conrad
“um
homem deveria enfrentar sua má sorte, seus erros, sua consciência,
e todas essas coisas. — Ora – o que mais há para se combater?”
(A linha de sombra)
A linha de sombra, a mim parece, é
muito mais uma sombra que uma linha, um espaço físico, mesmo que
metafórico, que se coloca a nossa frente, através do qual é
necessário passar, embora tenhamos o conhecimento tardio que nele
permaneceremos (ou permanecemos – leia no presente ou no pretérito
perfeito do indicativo) por um período de tempo variável de pessoa
para pessoa. Faço tal referência por sentir a sombra pairando sobre
minha cabeça e, mesmo que perceba a maré me encaminhando novamente
rumo à luz, sinto necessidade de extrair o máximo desse parafuso
que insiste em dar voltas e mais voltas.
Não se deve considerar a permanência
sob a sombra como um período de não evolução, e sim como um
período de transformação; lembremos as palavras do filósofo
francês Henri Bergson, que afirmava que “mudamos incessantemente”
e que “o próprio estado já é mudança” - não há diferença
entre passar de um estado a outro e persistir no mesmo estado:
“Nossa
personalidade, que se edifica a cada instante a partir da experiência
acumulada, muda incessantemente. Ao mudar, impede que um estado,
ainda que idêntico a si mesmo na superfície, se repita algum dia em
profundidade. É por isso que nossa duração é irreversível. (…)
“Assim,
nossa personalidade viceja, cresce, amadurece incessantemente.”2
Todavia, na tentativa talvez
infundada de interpretar o pensamento do escritor Joseph Conrad, a
sombra – do ponto de vista de quem já acumulou inúmeras
experiências – constitui-se como uma linha diante da imensidão do
mar, tomado aqui como metáfora das vivências. A narrativa da obra
de Conrad estrutura-se de forma memorialista – o protagonista
relembra uma experiência específica e fundamental para seu
amadurecimento como indivíduo e o faz através do escopo de uma
confissão, tal qual demonstra o subtítulo da novela. Assim não é
difícil entender o porquê de tomá-la como referência tal qual
tomamos uma conversa despretensiosa entre um pai ou um avô com um
filho angustiado com os desafios que surgem à sua frente. Tal
analogia, pois a obra desse escritor britânico de origem polaca
apresenta-se inicialmente como despretensiosa, alcançando um efeito
profundo após sua leitura.
A
história – marcada pela posição do protagonista em não se
identificar pelo nome (seria o próprio Conrad? entendo como uma
tentativa bem
sucedida
de universalizar um contexto deveras específico, todavia
poderoso em seu teor metafórico)
– é a de um jovem capitão convocado para seu primeiro comando e
colocado à deriva pela ausência de brisa enquanto observa sua
tripulação moribunda, vítima de uma febre tropical. A ausência de
brisa é representativa da sombra que encobre o personagem – nada
mais análogo ao
processo de amadurecimento dele; a
chave para a ansiedade e o terror que caracterizam a
profunda descoberta da condição humana em
resposta à “pretensão da humanidade à direção de seu próprio
destino”.
O mar, essa imensidão desafiadora,
atraente e dominadora, resgata bem a ideia do devir. Seu caráter
libertador contrasta com o espaço claustrofóbico representado pelo
navio e sua quase inoperância total, fruto da calmaria e da
incapacidade dos tripulantes acometidos por doença – condições
que exigem ação mediante a sentença da incerteza; a necessidade de
crescer, abandonando as ilusões despreocupadas da juventude, em
suma, lançar-se à sombra. Ao protagonista resta a dor do processo,
caracterizado por “um tumulto de vitalidade em tortura, de dúvida,
auto-acusação, e uma infinita relutância em encarar a horrenda
lógica da situação” e as consequentes marcas da transformação,
visíveis aos olhos de quem merece eterno apreço, lições
constantemente somadas a quem evolui incessantemente:
“-
Está
tudo certo, ele disse calmamente. - Você logo aprenderá a não
ficar desanimado. Um homem tem que aprender tudo – e isso é o que
tantos daqueles jovens não entendem.
“-
Bem, eu não sou mais um jovem.
“-
Não, ele admitiu.”
1CONRAD,
Joseph. A linha de sombra: uma confissão: “merecedores do meu
eterno apreço” / Joseph
Conrad; [tradução Maria Antonia Van Acker]. - Rio de Janeiro: O
Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.
2BERGSON,
Henri. A evolução criadora / Henri
Bergson; tradução: Bento Prado Neto. - São Paulo: Martins Fontes,
2005.
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